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Não quero falar sobre o artigo de opinião de Maria de Fátima Bonifácio, porque ia com certeza repetir coisas que já foram ditas no 728 artigos de opinião sobre a opinião de Bonifácio. Li todos os que pude, claro, porque aprecio uma boa polémica, e nem sempre o "Público" é fértil nessa matéria. E se descobríssemos agora que isto tinha sido uma grande manobra de marketing do jornal? Tirava-lhes o chapéu. E ficava aliviada, porque custa a crer que uma historiadora parta do exemplo de uma "empregada negra do meu prédio" para concluir que "os africanos são abertamente racistas". Mas não, aparentemente o texto não era a gozar, o que é pena, para a classe dos humoristas e para a dos historiadores, em simultâneo. Há muito tempo que um texto não era tão debatido (e rebatido) e isso, quanto a mim, era razão suficiente para justificar a sua existência. Se, ainda que a partir de uma qualquer barbaridade, as pessoas refletiram, discutiram, contra-argumentaram, já valeu a pena.
Aquilo que me interessa hoje analisar é a reação que vai para lá das linhas dos jornais, e que pretende passar para a barra do tribunal. O SOS Racismo avançou com uma queixa-crime contra a historiadora. No comunicado da associação pode ler-se que "ofender não pode ser opinião". É aqui que entramos num território perigosamente pantanoso. E sei do que falo (atenção, é muito raro eu saber do que falo, é de aproveitar), porque, por experiência própria, sei que qualquer tema é passível de ofender alguém. Seja escutismo, botânica ou renda de bilros. Já tive o prazer de ir perder tempo a tribunal mais do que uma vez, por coisas que escrevi ou disse. E o meu tempo até pode ser perdido à vontade, não é assim tão valioso. Se não estivesse no Campus de Justiça, estava em casa a ver gravações da "Passadeira Vermelha". Acredito, no entanto, que os juízes gostassem de ocupar-se com outros casos. Manuel Carvalho, diretor do "Público", numa atitude a fazer lembrar os pais que vão pedir desculpa pelo comportamento dos filhos, tratando a cronista do seu jornal como se tivesse oito anos (percebo que o nível da argumentação não tenha ajudado) veio dizer que o texto "está, no mínimo, nos limites do discurso de ódio". Será? Não me parece que Bonifácio incite à violência. Se tivesse passado das suas ilações inenarráveis, a partir de exemplos como o comportamento dos ciganos nos supermercados, para uma coisa do género "vamos impedir os ciganos de entrar no Pingo Doce", talvez devêssemos preocupar-nos.
A SOS Racismo diz que "as ideias da historiadora revelam uma ignorância em relação ao tema e ao seu complexo enquadramento social". Concordo inteiramente. Mas isso é ilegal? Então comecem já a ampliar os estabelecimentos prisionais! Se toda a gente que diz enormidades vai começar a ir dentro, precisamos que as cadeias tenham alas do A ao Z. Eu vou já andando, que com certeza já escrevi muita coisa ignorante. Aliás, o próprio Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, se bem me lembro, disse uma boa boçalidade, aqui há uns meses... E disse outra esta semana: "mais do que pedir desculpa, Fátima Bonifácio tem de pagar pelo que fez". Pagar como? O que propõe, Mamadou? Quantos anos de prisão? Na cela da Maria das Dores ou noutra, para não correr o risco de ser entrevistada pela Cristina Ferreira e dizer novamente qualquer coisa que lhe aumente a pena para 25 anos? Mas voltando à barbaridade mais antiga, Mamadou designou a polícia como "a bosta da bófia". Espero que ninguém tenha exigido, na altura, que pagasse pelo que fez. Dizer que a "bófia" (termo de gosto duvidoso mas que não dá direito a coima) é "bosta" é uma generalização tão absurda como dizer que os africanos são racistas.
Há muitos africanos, há muitos polícias, há muitos historiadores, há muitos dirigentes de associações que combatem o racismo. E felizmente, entre todos eles, há gente com bom senso. O bom senso que faltou a Bonifácio e falta agora a Ba. Deve ter lido algures que a melhor forma de combater fascismo é com uma medida fascista. É a mesma lógica de evitar a ressaca mantendo-se bêbedo. E neste momento parece que, em Portugal, todos estão alcoolizados. A uns, dá-lhes para dizer coisas sem nexo, aos outros, para reagirem violentamente. Vão para casa e tomem um Guronsan antes de dormir.
Humorista