Um homem de polo azul debruçado sobre uma relativamente clássica senhora num banco de madeira vermelho-esbatido, quatro e meia da tarde, Parque da Cidade, um beijo na boca em pose de cinema a preto e branco, e dela via-se apenas um cabelo ruivo cansado da fraqueza financeira da tinta da dona Albertina cabeleireira, numa tarde sem nortada. Ela, beijada a sério aos cinquenta e muitos, talvez sessenta, indiferente aos 4% por cento de recessão do primeiro trimestre, aos 100 mil novos desempregados deste ano - ela, talvez uma nova desempregada na vida, finalmente empregada no coração.
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Ali ao lado, a passar, vagarosos ou desportivos, imensas vidas de velhos com 20, 30, 40, 50, 60, 70 anos, os Desempregados do Sol, os que têm coragem de sair à rua e caminham nos parques com caras tapadas por mãos invisíveis a estas horas laborais impróprias para passeios nos parques, num impróprio país do Sul, belíssimo, sem vento, cheio de aromas, de cores, de silêncio.
Neste Monte das Oliveiras do Parque, neste Gólgota da Economia, os que se beijam a meio da tarde preguiçosamente, improdutivamente, ineficientemente, moem de prazer os anémicos da culpa, do vazio, da desgraça: "Eu-sou-um-inútil". Cada passo, cada sílaba. Apanhar Sol, disse o sr. Goucha ou a Dona Júlia, faz bem à saúde, é barato, é o que resta. Está atrasada a morte, o desemprego chegou antes - nesta paragem de autocarro só havia duas carreiras, apanhei o primeiro que chegou, não sei para onde vou, só sei que me levam por aqui. Às quatro da tarde, todos os dias, em direção ao telejornal das oito, à novela das dez, à pastilha do sono da 1h, ao virar na cama das 4h.
Há beijo parado no banco do Parque para fraturar a nossa tranquilidade vazia onde até sonhar parece ter IVA. Um/a amante? E se a vida arrancasse das pedras uma novidade em carne e osso? Alguém com quem falar ou até mais do que isso? Algo que finalmente pusesse a funcionar o hipotálamo com um cenário de vida para além de um caixão encomendado todos os dias logo ao acordar com o pensamento - mais um dia.
Alguém novo. O regresso das glândulas suprarrenais. Finalmente as veias com hormonas como se a guerra estivesse suspensa! Um beijo no parque, no meio da III Guerra Mundial do Desemprego = um beijo no Champs Elysées no fim da Segunda Guerra Mundial. Chapéus ao ar! Hurra! A Guerra a acabar (em sonhos)! Mas como pode acabar uma guerra não declarada? Como retirar dos campos de concentração da vida os homens e mulheres enterrados vivos em casa, estrelas de dor na lapela, à espera do fim do subsídio, do corte na reforma, da falta dos medicamentos, do fim do Estado, do fim da economia nacional que não consegue crescer, do fim da esperança dos mais novos, da demora na chegada da voz dos que já partiram para o estrangeiro? Morram, naturalmente, em casa de preferência. Sem crime ou impressão digital. Gaseados por antidepressivos, ataques de coração, cancros de tristeza ou Alfas na estação da Madalena. Foi nisto que se converteu a Economia, a Eficiente afetação dos recursos...
Se a sustentabilidade social fosse partilhar o pão através da esmola de umas horas de emprego com salário definido pela "ONU dos Direitos Humanos e Salariais", talvez pudesse haver um armistício, criminosos de guerra declarados e classificados, e a globalização tivesse uma intermediação sensata. As bolsas seriam outras, menos fundas, menos rápidas, e cotariam bem os países e as empresas que valorizassem esse bem-estar do todo. Ah, uma Eco-nomia, uma espécie de mercado financeiro vegetariano onde não se comessem criancinhas ao pequeno almoço... Um mundo outra-coisa. Sem extermínio de asiáticos ou africanos pela fome nem europeus pelo excesso de gordura e depressão. Já há (sempre houve) milhões de vítimas mas o desastre continua invisível porque legitimamos o desequilíbrio através do mérito. E o mérito potencia o efeito eufórico do consumo porque cada alucinação tem a sua droga.
Há um extraordinariamente belo Salmo, o 137, que diz uma coisa entendível para os Católicos da meritocracia do Sul, para os Calvinistas expiadores do Norte, para os ateus: "Junto aos rios da Babilónia nos assentamos e choramos lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros, que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Porquanto aqueles que nos levavam cativos nos pediam uma canção, e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos um dos cânticos de Sião".
Obrigado ao JN pelos 125 anos. Esta é a Babilónia que vejo hoje da minha janela.