Em tese a notícia é boa: embora rejeitando ficar de cócoras, o Governo deu ouvidos ao clamor de equidade defendido pelo presidente da República e seus antecessores no cargo. Em sede de discussão do Orçamento do Estado, 40 mil funcionários públicos e 120 mil pensionistas safaram-se do corte de um subsídio (Natal ou férias) no próximo ano, graças a fórmula benfeitora: agora a supressão do dinheirinho só se aplica acima dos 600 euros (brutos) e não dos 485 euros, como consagrava a proposta inicial. Ou seja: o patamar a partir do qual os portugueses dependentes do Estado passam a ser "martelados" nos subsídios subiu 115 euros! E muitos também se livram de ver os dois subsídios por um canudo mercê da passagem do intervalo de "decapitação" dos 1000 para os 1100 euros.
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Sob a promessa de aumentar taxas liberatórias, juros, dividendos e mais-valias para os 25% como alternativa à perda de 130 milhões de euros, a aparente magnanimidade manifestada pelo PSD e o PP é geradora, naturalmente, de várias leituras.
Uma delas do tipo pescada - isto é, antes de ser já o era: o PCP e o BE continuam intocáveis na sanha oposicionista. "Um roubo é um roubo", clamou o líder parlamentar comunista, convicto, muito convicto, o que indicia sérios progressos de Bernardino Soares após há uns anos ter ficado célebre pelas suas dúvidas sobre se a Coreia do Norte seria, ou não, uma democracia. E o bloquista Luís Fazenda fez coro: "um assalto é um assalto". Pois. Ambos esqueceram-se de enfatizar que é de mau tom roubar ou assaltar um mendigo (o país).
Outra análise, de maior substrato, resulta do posicionamento do PS. As várias abébias de apoio dadas por Cavaco Silva à abertura negocial do Governo com o principal partido da Oposição rendeu... zero.
Na difícil gestão do período pós--socrático, do qual o memorando da troika é herança incontornável, António José Seguro conseguiu resistir aos apetites do contra dos ex--governantes agora posicionados na sua bancada parlamentar, mas não foi capaz de safar-se do beco em que se meteu. Em vez de anunciar a abstenção no escuro, ou seja, antes de conhecer o documento de proposta de orçamento, fez finca--pé numa folga virtual para evitar os cortes dos subsídios na discussão na especialidade - a própria troika desautorizou-o - e cometeu um erro fatal: foi incapaz de apresentar uma alternativa de financiamento do erário público. Inexistindo no seu grupo de trabalho quem tenha imagem e peso específico para gerar alternativas às opções de Vítor Gaspar, o ministro das Finanças, Seguro ficou ontem na fotografia como um bem-intencionado a quem o Governo pôs à frente um rebuçadito. É curto...
Dado o bodo aos pobres - o patamar de riqueza para efeitos de cortes nos subsídios de pensionistas e funcionários públicos passa para estrondosos 600 euros mensais! -, o Governo dá, enfim, a imagem de alguma preocupação social.
Intocável mantém-se, no entanto, a projecção orçamental mais difícil e castigadora para os bolsos dos portugueses nas últimas décadas. E o pior é colocar o cenário, mais do que crível, de que não há nenhuma garantia do alívio dos bolsos de milhares de portugueses ser para valer. A este pacote de austeridade outro se seguirá...