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S. foi à Praça da Batalha pedir ajuda. Cruzei-me com ele por acaso, enquanto furava a multidão em busca de histórias para contar, mas detive-me ao vê-lo, aquele homem tão diferente de mim, em esforço por encontrar as palavras certas para expor a sua realidade. O cabelo escuro, penteado para trás num apanhado, o queixo pronunciado e os olhos grandes, profundos e expressivos, tão delineados que parecem ter sido desenhados à mão, provam que é de outra geografia e que algures no tempo escolheu o Porto para fazer vida. É marroquino. Está em Portugal há dois anos “e pico”, expressão portuguesa que S. decorou e repete com orgulho, trabalha nas obras e divide casa com 16 pessoas, quatro delas no mesmo quarto. E, por isso, juntou-se às centenas de pessoas que desfilaram no sábado pela Baixa portuense na manifestação “Casas para Viver”, que decorreu em simultâneo em mais de 20 cidades do continente e ilhas, por uma habitação digna, justa e acessível.
S. junta as mãos à frente do peito para me pedir desculpa. Não quer dar a cara. Tem medo do patrão, que é dono da casa onde vive e de tantas outras, e vergonha de ser reconhecido nas páginas do jornal. Digo-lhe que não faz mal, que entendo, conto-lhe que já fui a Marrocos e o rosto dele ilumina-se. Pergunta-me onde fui, se gostei do que vi e do seu povo, diz-me que devia voltar e enumera rapidamente um conjunto de “cidades bonitas” para o caso de eu querer voltar.
Confesso que não consegui decorar os lugares de que S. me falou, mas decorei-lhe o rosto. O rosto de S. é um dos milhares que constrói o mosaico da crise habitacional, cada vez mais complexa, cada vez mais transversal, cada vez mais sombria. Afeta jovens e idosos, famílias de todas as composições, empregados e desempregados, nacionais e imigrantes. Não é justo que S. viva numa casa com 16 pessoas, que divida quarto com mais quatro colegas de trabalho. Não é justo que jovens - muitos deles já adultos, na verdade - não consigam sair da casa dos pais. Não é justo que idosos sejam despejados sem dó da casa onde viveram décadas ou que sejam ameaçados pela cultura do medo. Não é justo que se tenha de tirar à mesa para pagar a renda ou a prestação ao banco. Não ter um teto é das situações mais indignas. E por estes dias, o sufoco é denominador comum.
Abraçado por portugueses, S. pega num cartaz e junta-se à frente do protesto. Pergunta-me quando será o próximo, que quer chamar amigos, e diz-me que deviam acontecer todos os meses. Talvez o S. tenha razão, talvez o eco destas vozes uníssonas ainda não tenha chegado onde têm de chegar. Mas uma coisa é certa: o sufoco é real.