Segundo um rumor posto a correr nos últimos dias por setores conservadores radicais, um espetro pode vir a ameaçar a estabilidade do nosso sistema político: com as últimas sondagens a apontar para a possibilidade de as "esquerdas" terem mais de 2/3 dos deputados na próxima legislatura, elas poderiam ser tentadas a provocar, em conjunto, uma revisão constitucional de sentido extremista.
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Imagino que não deva tardar o anúncio do "óbvio": vaga de nacionalizações, ataques à propriedade privada, desafio das regras europeias, a NATO em causa, quiçá uma reforma agrária no fim da linha. Em suma, o "perigo vermelho". As condicionantes europeias, o chefe do Estado, enfim, toda a história política do PS, tudo isso é indiferente aos imaginativos adeptos desta singular teoria da conspiração.
Nos anos 80, quando Mitterrand gizou a maioria de esquerda que governou a França, houve quem chegasse a "prever" a chegada dos tanques russos à Praça da Concórdia. Admito que, agora, possam ser tanques chineses no Rossio...
Em política, não vale tudo. No equilíbrio interno das ideologias, sente-se que a direita atravessa um mau momento, como o próprio presidente da República o reconheceu, mas isso não autoriza a que alguns a colem a um delírio, que tem tanto de insultuoso para os adversários democráticos como de ridículo para a sua própria credibilidade política, tantas são as razões que infirmam, pelo absurdo, todos esses receios.
Sabemos que alguns andam por aí à cata das perceções de insegurança, com que procuram construir políticas tributárias de medos obsessivos. Outros vão tendo, por estes dias, pulsões liberais agressivas (leiam-lhes os inomináveis cartazes), feitos de brisas da escola de Chicago, traduzidos por cá em calão político populista. Mas a grande maioria das pessoas que entre nós se afirmam de direita, respeitadoras do compromisso constitucional, sabem que o essencial do seu projeto está hoje refletido no quotidiano da nossa vida em sociedade, como parte de um sistema político que ajudaram a construir e que - a níveis presidencial, parlamentar e autárquico - lhes concede, com as regras de alternância, um livre acesso regular ao espaço de exercício de poder. Tal como à esquerda.
A ironia do cenário do "golpe" constitucional é que ele acaba por funcionar como um subliminar fator em favor da bondade de uma maioria absoluta para o PS. É que, perante esse "perigo", votar maciçamente nos socialistas pode acabar por ser a melhor garantia de que estes ficam sem pressões radicais à sua esquerda.
*Embaixador