É provável que o leitor esteja a folhear este jornal às quatro da tarde, a recuperar da ressaca pós-campeonato, quer tenha bebido para festejar ou para esquecer.
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No momento em que escrevo estas linhas não sei o que vai acontecer mas suspeito. Que é, de resto, um substantivo muito usado na Luz. Mas não estamos aqui para falar de Paulo Gonçalves, apenas de futebol. O mais provável é que o Benfica tenha vencido, em casa, aquele clube açoriano com equipamento muito semelhante ao seu, e que o Porto tenha conseguido um bom resultado frente ao Sporting, num jogo que não conta para nada, para depois perder no encontro que realmente interessa. Tem sido assim esta época. Ganhar ao Benfica com um retumbante 3-1? Sim senhora, mas só para a Taça da Liga, esse troféu tão estimado por todos os portistas. De tal forma que mais uma vez o clube se recusou a ganhá-lo, providenciando um penálti absurdo ao Sporting no último minuto. "Há dias assim", dizemos nós quando tudo parece correr-nos mal (entornamos o café, batemos com o carro, somos apanhados numa arruada do Nuno Melo...), "há anos assim" dirão os clubes quando tudo sai ao lado (pode adaptar para "décadas" se for do SCP). Mas o futebol tem uma coisa fantástica, para lá dos golos de belo efeito e das tabelas de "liga real" do Rui Santos, que é o facto de permitir sempre um novo começo. Todos os verões voltamos à estaca zero e todos têm chances de tentar de novo. Só isso explica que Petit ainda seja treinador. E se isto pode servir de consolo a quem perde, a verdade é que também causa ligeira angústia a quem ganha. Senti-o no final da época passada, assim que o Herrera ergueu a taça. Comparo esta nostalgia de fim de época àquele misto de alegria e tristeza que sentimos quando um livro que adoramos está a chegar ao fim (analogia arriscada, já que parte dos adeptos de futebol só leem "A Bola", e não consta que haja grande nostalgia quando se chega à página do cartoon "barba e cabelo").
Depois de tanto tempo a acumular pontos, eles esfumam-se. Para o 1.o classificado, ainda dão direito a festa rija, já para os restantes, nem sequer servem para trocar por pequenos eletrodomésticos, como os pontos da Galp. Começo a duvidar que este modelo de campeonato compense: espera-se 9 meses para saber o que vai sair. É como uma gestação! Com a diferença que do nosso filho nos parece sempre lindo, já o campeão nacional podemos achar horrível. De cada vez que perdemos sentimos que foram 34 fins de semana desperdiçados. Estes sábados e domingos são como os milhões que Berardo deve à Caixa: nunca os teremos de volta.
O nosso futebol é uma novela que está encravada no último episódio, aquele em que tudo acontece: carros despenham-se de ravinas, o assassino é apanhado, as irmãs separadas reencontram-se. Pode trocar as palavras "carros" por "piscineiros", "assassino" por "homem da mala" e "irmãs separadas" por "jogadores que antes eram inimigos figadais". Vão mudando os atores mas nunca acaba, apesar de estar sempre a pairar o fantasma do fim do futebol. "Estão a matar o futebol" é já uma frase estafada, mas o futebol português parece ser mais resistente do que o Wolverine, nada o deita abaixo. Acho que Nietzsche falava do eterno retorno pensando já no nosso campeonato. Todos os anos regressam as polémicas com penáltis, claques, diretores de comunicação e, pelo meio, um ou outro lance bem gizado. E no fim, quem perde garante que nunca mais verá futebol. Normalmente a promessa dura menos de um mês, até ao primeiro jogo de treino contra uma equipa da 3.a divisão holandesa.
Dizemos que o nosso futebol devia ser igual ao inglês, porém mentimos. Não queremos, de repente, um Nacional que jogue como o Wolverhampton, nem um Feirense armado em Leicester. E também não queremos um treinador que não se queixe do árbitro. Gostamos de ver atitudes como a de Pep Guardiola (que, depois de eliminado, disse que não queria ganhar com um golo ilegal) da mesma forma que gostamos de ver o sol: ao longe. É que se for muito perto de nós, queima. E cegaria, não fôssemos nós já cegos no que toca à bola. Se, de repente, a nossa liga fosse isenta de palhaçada, recordaríamos com saudade aquele dia em que Samaris deixou Coentrão de mão estendida e o caxineiro, de forma muito adulta, lhe puxou os calções para baixo.
Humorista