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Deve haver uma ancestralidade pré-histórica no fascínio das crianças por paus e pedras. É com certeza um impulso primitivo que leva os putos a guardarem tantos pauzinhos e pedrinhas nos bolsos, a afeiçoarem-se a eles, distinguindo-os perfeitamente uns dos outros, conservando-os como relíquias. O meu, passa boa parte do tempo de recreio a fazer arqueologia, desenterrando pedrinhas com formatos que lhe parecem interessantes, selecionando paus, às vezes minúsculos, que limpa com todo o cuidado para depois levar para casa. Tem sempre alguns nos bolsos, na mochila, no carro, no quarto e ai de mim que os perca, se fui incumbida de os guardar, ou que os deite fora, quando os encontro em algum esconderijo. É que quando ele pergunta por um pauzinho específico ou por uma determinada pedra, não serve nenhuma outra e fica desolado se a damos como perdida.
Por outro lado, não é menos comum que as crianças sejam exigentes no realismo de certas brincadeiras. Se querem fazer um robô, imaginam-no mesmo feito de metal e componentes eletrónicos, com botão de ligar e desligar e capacidade para fazer algumas tarefas, como é comum nos desenhos animados. Se querem um foguetão, muitas vezes não lhes serve só um modelo de cartão, havendo alguma frustração perante a sua incapacidade de decolar mesmo com um rasto de fumaça pela atmosfera. O meu filho frustra-se muitas vezes com esses "inconseguimentos", até mesmo nas suas limitações enquanto ser-humano-de-verdade-sem-super-poderes. Queria poder andar sobre as águas (mesmo sem ter conhecimento desse episódio da história de Jesus Cristo), queria poder voar mesmo sem asas (como Peter Pan) e nem o caso das avestruzes (que são aves com asas a sério e ainda assim incapazes de voar) lhe apazigua a ambição inconcretizável. Sortudos são os patos, dizemos nós, que não só voam, como nadam bem e ainda conseguem caminhar, na vida real e sem pós de perlimpimpim!
Enfim, a magia das coisas mais concretas (como os paus e as pedras) e as prosaicas limitações da vida real convivem na infância com toda a coerência. Mas o que me ocorre, diante da dificuldade em ultrapassar a realidade para tornar possíveis as coisas que os desenhos animados instalaram como desejo, é dizer-lhe que, de facto, a eletrónica é complexa e sujeita a muitas falhas, assim como a aeronáutica e a mecânica no geral, que as leis da física são bastante rígidas no quesito inevitabilidade e que tentar fintá-las é no mínimo inglório, mas que há uma coisa infalível, que supera todos os constrangimentos, que não depende da corrente elétrica, de combustíveis fósseis, de matérias-primas difíceis de domar. Uma coisa que não obedece à lógica, que desrespeita até a lei da gravidade e que autoriza tudo, a todo o momento, abrindo todas as possibilidades. Uma coisa tão ancestral como paus e pedras e tão sofisticada como a robótica, tão sagrada como a mitologia e tão poderosa como um superpoder. Ele pergunta "O quê, mãe?" como os olhos arregalados e eu respondo com o mesmo entusiasmo: "A velha e boa imaginação!"