De que se falou à mesa da consoada? Em mais este final de ano, tensos das compras e das correrias e seguramente cansados dos saltos, nem sempre conseguidos, sobre os obstáculos que persistem em nos polvilhar a vida, tudo se conjuga para que as conversas possam ser tensas ou mesmo violentas.
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Basta uma palavra solta sobre a Banca e as vozes misturam-se numa confusão zangada de agressões mais ou menos pessoais a todos os banqueiros, ricos e capitalistas. Haverá sempre alguém que confiou e foi traído, alguém que apostou e perdeu, alguém que se sente mais solicitado do que devia a tapar buracos que não abriu.
BPN, BPP e BES podem assim ter ocupado uma grande parte da sopa e mesmo do prato principal. Sim, que os lombos são fartos, bem azeitados e pedem vagar.
A bem da verdade, por conta das couves portuguesas e outros acompanhamentos, o conduto ainda dá para mais. Mas ainda avinagrado.
Luvas e esquemas oleados, vistos que se fizeram de vista grossa, uma Administração Pública que podia ser como a italiana, a ver passar governos e a garantir alguma estabilidade e confiança ao regular funcionamento da vida de todos os dias, mas não, a querer fugir para a chico-espertice e para o golpe baixo numa ânsia de dinheiro gordo e rápido ao arrepio de tudo o que cheire a exemplo e honradez.
É provável, por esta altura, que a coisa dê para o torto. Afinal, temos mais de 500 000 funcionários públicos e é normal que haja alguém à mesa que o seja e que se sinta atingido injustamente.
É normal. O discurso público sobre a matéria ora entorna para a generalização abusiva sobre o que de mal se faz na Função Pública (muitas vezes do lado mais neoliberal do Governo) ora entorna para a santificação bacoca que não serve propriamente a ninguém, do lado dos sindicatos. Diga-se aliás que, deste lado, a repetição das virtudes de um Estado mais interventivo e absolutamente conservador de quem emprega é tão sistemática que deixa saudades da alegada cassete do dr. Cunhal.
De certeza que pelo final do cozido já se entornava dos dois lados pelas nossas mesas natalícias.
E não há meio de se passar para as inevitáveis memórias dos tempos de infância, das consoadas do antigamente, do "nessa altura é que era" e que quase sempre passam por postais de Natal muito compostos e muito sustentáveis. Para lembrar a pobreza, a doer, isso só mesmo Dickens.
Enfim, arrumado o fiel amigo, os temas perfilam-se como as sobremesas. Rabanadas, mexidos e semelhantes concitam este ano, estou segura, ou o descalabro das contas públicas, ou as eleições que aí vêm, ou a pouca vergonha da TAP. Do ponto de vista dos consumidores que todos somos e das cores da bandeira que ainda respeitamos, a TAP (e os seus trabalhadores) são apenas uma pouca vergonha. Como, ainda por cima, ninguém explica exatamente o que os senhores querem e porque é que se lhes não pode dar o que querem, tudo se resume, entre trincas ao pudim, num vaivém de argumentos e contra-argumentos a favor da privatização, contra os trabalhadores e uma espécie de angústia escondida sobre as marcas portuguesas que nos tiram.
Se ainda sobrar, imediatamente a seguir, espaço e vontade para queijos e vinho do Porto, a pièce de résistance será seguramente a prisão de José Sócrates. Também aqui, como nos barcos, se adorna para um lado e para o outro. Das suspeitas sobre o caráter do ex-PM, à sistemática falta de provas, da pouca ou nenhuma necessidade de o prender, à justiça que tem de se fazer sobre "os grandes deste mundo", não há descanso e a conversa é ainda densa, problemática, sorumbática mesmo.
Não vejo, olhando para trás, que seja possível mantermos, todos, conversas diferentes. O que aconteceu globalmente em Portugal neste ano de 2014 foi um verdadeiro murro no estômago da nossa confiança e da nossa serenidade coletiva. Muito pior, diga-se, do que os anúncios dos cortes, das subidas de impostos ou do eterno défice orçamental.
O que aconteceu continuará a governar os nossos falares mesmo que soterrados pelos apitos e papelinhos do fim de ano que se aproxima.