O discurso de Ano Novo do presidente da República (PR) teve tanto de esperado como de inesperado. Cavaco Silva não falhou o sinal de esperança ancorado nos indicadores económicos menos maus do final de 2013, nem a alusão aos 40 anos do 25 de Abril, nem mesmo a já habitual chamada ao consenso.
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A grande surpresa foi a ausência de qualquer referência a um eventual pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade do Orçamento do Estado (OE) para 2014. Mas por muito que o PR tenha procurado manter-se distante do centro do furacão, a oposição encarregar-se-á de endereçar ao Tribunal Constitucional (TC). E este poderá ser o elemento indutor de uma tempestade perfeita, a acontecer lá para abril ou maio.
Há um ano, o PR enviou o OE 2013 para o TC em janeiro. No início de abril, saiu a decisão, que chumbou quatro normas do documento, abrindo assim um buraco de 1300 Meuro no orçamento. Na altura, o acórdão não definiu qualquer medida de restrição de efeitos, pelo que as normas declaradas inconstitucionais perderam a sua eficácia desde a data em que haviam entrado em vigor, isto é, a 1 de janeiro de 2013. No ano anterior, em sede de fiscalização sucessiva da constitucionalidade do OE 2012, o TC havia chumbado a suspensão dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos, reformados e pensionistas, uma decisão tomada a 5 de Julho. Só que dessa vez restringiu os efeitos da decisão, suspendendo a sua aplicação no ano de 2012.
Considerando os tempos de resposta dos dois anos anteriores, é razoável antever que a decisão do Constitucional conhecerá a luz entre abril e julho de 2014. Este calendário não podia ser mais (in)oportuno, porque coincide justamente com alguns acontecimentos de elevada criticidade para o país. Refiro-me à eleição para o Parlamento Europeu, que naturalmente exacerbará o tom do combate político-partidário, e também ao agendado fecho do programa de assistência a que Portugal teve de recorrer desde o verão quente de 2011. Uma combinação de eventos que, mercê da sua coincidência temporal, garante os ingredientes para a tempestade perfeita.
Um OE que busca um défice de apenas 4%, algo de que já não nos lembramos, dificilmente sobreviverá a um torpedo vindo do TC. Com esta importante ferramenta de gestão inviabilizada, as condições de fecho da assistência internacional saem irremediavelmente prejudicadas e, ao invés do prometido programa cautelar, podemos vir a cair na fatalidade de um segundo resgate.
A questão crucial do momento é, na verdade, dupla: "Como se evita uma tempestade perfeita?", a que se segue "Não se evitando, como se sai de uma tempestade perfeita?". As respostas, não sendo impossíveis, são certamente complexas.
Começando pela primeira, a questão está nas mãos dos juízes do Palácio de Ratton. Estou certo de que não abdicarão do rigor e da ponderação necessários a tão pesada decisão, como o provaram no passado recente. Mas sei também que têm ao seu dispor um mecanismo que permitiria reduzir o impacto da sua decisão, amortecendo assim, e muito, o potencial da tempestade. Falo da possibilidade de invocar o nível avançado de execução de um orçamento absolutamente crítico para o país, para introduzir uma medida de restrição de efeitos, que pode ser parcial ou total, mediante o impacto das normas que possam vir a ser declaradas inconstitucionais. É um caminho que não colocaria em crise o exercício da justiça nem dos seus valores, que não absolveria da responsabilidade política o Governo, enquanto autor do OE, mas que adotaria um pragmatismo vital. Evitava-se a tempestade perfeita.
Agora, a segunda questão. Não se sai de uma tempestade perfeita com os mesmos recursos com que se entrou. Se com esta coligação governamental e esta oposição se chegar a um orçamento inviável e à impossibilidade de fecho do programa de assistência e da desejada saída da troika, então impor-se-á um redesenho do poder governativo. A negociação e subscrição de um novo memorando por parte dos três partidos do arco do poder não serão suficientes. Só mesmo um governo de salvação nacional poderá furar a tempestade perfeita.