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Tinha ido há poucos dias ao Teatro São João ver a peça “Terminal: o estado do Mundo”, de Miguel Fragata (encenação) e Inês Barahona (texto). A história de Era e do rio que galgou as margens para destruir tudo em redor, deixando uma multidão de refugiados e guerras causadas pela escassez, ainda ecoava em mim, quando aquelas imagens catastróficas começaram a chegar. Carros empilhados, edifícios sepultados pela lama, gente pedindo ajuda nos telhados, pontes destruídas, o caos! Rapidamente chegava a reconstituição dos acontecimentos e a par da noção da dimensão do fenómeno meteorológico, percebemos as gravíssimas falhas do governo da Comunidade Valenciana.
A coligação PP e Vox teve como uma das suas primeiras medidas após a tomada de posse eliminar a Unidade Valenciana de Emergências por considerá-la mais uma organização pública supérflua. É a senda de “emagrecer” o Estado. O mesmo executivo, sabendo que a tempestade DANA seria de grande monta, só emitiu um alerta à população quando o caos já estava instalado e era óbvio para todos que a tragédia já estava em curso. Respaldadas pela falta de avisos à altura das necessidades, as empresas mantiveram funcionamento normal, segurando os trabalhadores nas suas funções e arriscando, com isso, as suas vidas.
Até à data que vos escrevo, há mais de duzentos mortos e quase dois mil desaparecidos e fica claro que esta mistura entre alterações climáticas e o crescimento do neoliberalismo de extrema-direita é muito perigosa. Desde logo pelo negacionismo ou, no mínimo, pela desvalorização da crise climática, com o consequente desinvestimento nas políticas ambientais. Depois pela delapidação dos serviços do Estado, que deve reforçar as suas capacidades de acudir em momento de catástrofe e investir em estratégias de adaptação. Como também pela defesa de um sistema económico que põe o lucro acima da vida humana (no plano global) e do qual não podemos esperar que saia a proteção da vida dos trabalhadores, em situações como esta.
Posso parecer demasiado cínica, mas é a conjugação destes fatores em “tempestades” cada vez mais “perfeitas” que vem à superfície, furacão após furacão, incêndio após incêndio. (É impossível esquecer o jovem brasileiro que faleceu no meio do fogo em Portugal por alegadamente ter recebido ordens para resgatar o material da empresa). Nestas enxurradas de lodo, em que ninguém está a salvo, vemos a nossa profunda inércia enquanto civilização. E só nas nossas imediações, na mesma semana, vimos a chuva alagar o deserto do Sara e um Mediterrâneo de águas tropicais produzir um furacão caribenho. A probabilidade de nos tornarmos refugiados do clima cresce à medida do desinteresse político pelas questões ambientais.