Olho por cima do ombro e temo que me sigam. Falo ao telefone, mas tenho de medir as palavras quando o tema é futebol. De cada vez que vejo um envelope na mesa, temo que seja uma notificação. Em resumo, vivo num sobressalto. Tudo porque em finais da última década acompanhei alguns jogos do F. C. Porto a convite de uma empresa.
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Escusam de me perguntar qual era a empresa, porque para errar é melhor não arriscar. Do golo do Quaresma no Besiktas lembro-me bem, mas a verdade é que os convites eram feitos a um camarada de redação, que por sua vez me convidava a mim e o nome da empresa patrocinadora nunca foi coisa que se atravessasse no meu caminho. Pode até ser que tenha sido a Galp, essa fonte de tentação petrolífera, mas foi tudo antes de a cortesia ser criminalizada...
Agora, como se sabe, pode ser "recebimento indevido de vantagem" e levar mesmo à queda de secretários de Estado, mas era bom perceber que até ao ano passado era coisa corriqueira, a que ninguém atribuía um valor muito especial. Agora, os tempos são de desconfiança exaltada perante qualquer "privilégio" das elites, mas mesmo assim acho que era bom perceber que há em todo este caso sinais alarmantes na atuação do Ministério Público (MP) que deveriam merecer a nossa atenção.
Desde logo, interrogo-me porque é que um caso que está todo contado e confessado desde que foi relatado demorou um ano para que os governantes em causa fossem constituídos arguidos. E ao que parece há um outro, ainda mais atrasado, em que serão investigados, pelas mesmas idas aos jogos da seleção, deputados e autarcas. A estupefação final é como é que perante o conhecimento geral de que esta era uma prática comum, só estas viagens estão a ser investigadas e não se abriu um megaprocesso sobre todas as idas à bola que ainda não prescreveram.
Porque o que neste caso nos deveria mesmo interpelar é o poder arbitrário que o MP tem, graças a uma norma não escrita que faz com que a velha máxima de que "todos são inocentes até prova em contrário" não se aplique aos políticos. Se se é governante, basta ser arguido para isso provocar demissão, mesmo que no caso em concreto se tratem de matérias razoavelmente insignificantes e provavelmente não venha a dar em nada. Mas se o MP consegue manter em lume brando um ex-primeiro-ministro, quem é que não tem razões para ter medo?
A "república dos juízes" não está assim tão longe e isso é uma ameaça à qualidade da República e da democracia que nos devia fazer pensar muito mais do que umas idas à bola.
* SUBDIRETOR