Corpo do artigo
1Num tempo passado que já não volta, ser professor do liceu era sentido como uma vocação. Tão exigente que, com frequência, implicava a renúncia talvez nem sequer voluntária ou consciente a outras dimensões fundamentais da vida - por exemplo, constituir família. Era eu pequenitates e várias colegas da minha mãe (de uma geração acima) começaram a atingir a idade da reforma. Na minha memória, eram muitas vezes senhoras altas e magras, de aspeto severo e grave, pelo menos aos olhos da criança que as fitava com temor de baixo para cima. Fazia-se uma pequena cerimónia de despedida no liceu, as que ficavam diziam adeus à que partia, honrando uma dedicação impoluta de décadas ao ensino.
Mais coisa menos coisa, seis meses ou um ano depois (o tempo de um menino é mais vago do que o tempo verdadeiro), lá ia eu acompanhar a minha mãe a um funeral, a despedir-se uma última vez da última que se tinha reformado. Partia-se da função, partia-se da vida.
Hoje, o valor e função social do trabalho alteraram-se de forma dramática. O trabalho deixou há muito de ser considerado tão só como dever e responsabilidade que se impunham a quase tudo. Mas também, infelizmente, o trabalho tem vindo a transformar-se num "bem" cada vez mais escasso, tido como privilégio, com toda a carga de sofrimento individual e social grave que isso representa.
A idade da reforma tende, por outro lado, a ser remetida para as calendas: por lei, e pela força das circunstâncias. É possível que venhamos outra vez a não ter a expectativa de gozar alguns anos na reforma, por poucos que sejam. Regressamos à angústia passada, ao peso opressivo de não podermos sair. E tudo isto vem acompanhado em paralelo do drama de muitos outros, escorraçados do mercado de trabalho e, sobretudo, não sabendo se um dia conseguirão voltar; ou da ansiedade daqueles que nem sequer entram e veem a sua vida adulta diminuída e humilhada quando ainda está a iniciar-se.
2. Lembrei-me disto, veja-se lá, a propósito da renúncia do Papa Bento XVI. Foi inovador e de certa forma "revolucionário" na altura da saída. O católico dirá que foi inspirado por Deus na sua decisão. Mas, mesmo para um católico, a decisão de Bento XVI foi intrínseca e dolorosamente humana. Soube sair, não deixou que fosse a morte, essa lúgubre ceifeira, a decidir por si. Retira-se pelo seu pé, pela avaliação interior que fez da (in)capacidade física para continuar a ser a cabeça da Igreja. Esta decisão revela várias coisas. Primeiro, o desapego ao "poder" e a humildade: porque nada o obrigava a tomar esta atitude, nem ninguém sequer a esperava. Depois, uma extraordinária lucidez porque, quando se aproxima o fim da vida, a saída deve ser muito difícil: é definitiva, não uma pausa ou simples intervalo. Finalmente, uma conceção muito moderna da função papal, doravante sujeita a um escrutínio de "capacidade" e "eficiência". Bento XVI tinha-se-nos imposto pela razão, pela excelência e fulgor do seu pensamento e da sua cultura. Com o anúncio sereno e despojado da renúncia - uma decisão de razão - conquistou o coração dos católicos e, acredito, de muitos que o não são.
3. O país está cada vez mais parecido com um matadouro da esperança. Quase um milhão de desempregados, a juventude em debandada, a recessão a devorar-nos a carne, os ossos e a alma. Ainda ontem, o primeiro-ministro proclamou no Parlamento que "os resultados (desemprego e PIB) transportam-nos para um nível de procura externa que, a manter-se durante o ano de 2013, não nos permitiria manter as previsões que fizemos"; e "ninguém pode afastar a hipótese de uma espiral recessiva". Traduzindo para português corrente: está tudo abaixo de cão, e as "previsões" continuam a ser feitas depois de a realidade (esse empecilho irritante) continuar a destruir-nos, sempre muito pior do que o "previsto".
É o "método" João Pinto aplicado à governação: prognósticos, só no fim do jogo. Mas, quando João Pinto jogava, o mais provável era que o F. C. Porto viesse a ganhar. Neste triste Portugal, bem pelo contrário, o Governo já só espera que não seja goleada atrás de goleada.
