No século XIX, Marx anteviu o colapso do capitalismo: uma contradição endémica, com tendência para se acentuar, conduziria à sua própria destruição. O poder e o dinheiro concentrar-se-iam cada vez em menos mãos, o que tornaria não apenas o sistema não sustentável economicamente - faltaria o consumo necessário ao escoamento das mercadorias produzidas - e socialmente - os excluídos, o chamado proletariado, lideraria a revolta com vista à substituição do modelo societário. Aparentemente, Marx terá falhado nas suas previsões, por uma multiplicidade de razões patentes no consumismo, na evolução tecnológica, na mundialização da economia e na vitalidade da democracia. Marx não foi capaz de antecipar a resiliência do sistema capitalista às suas contradições. Os Estados Unidos da América, ainda hoje a economia mais avançada do Mundo, são a prova viva da falência dessas previsões calamitosas e mecanicistas. A desagregação do império soviético a pedra na sepultura. O marxismo estava morto e enterrado. Eis senão quando o mundo capitalista revive uma crise estrutural, reavivando os tempos idos da década de 30 do século passado. Perante esse facto, não faltou quem procurasse reabilitar o velho Marx, aproveitando a boleia dos catastrofistas que vinham anunciando a crise há quase tanto tempo quanto ele.
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A grande depressão de 1929-33 foi um teste sério ao sistema e demonstrou a sua capacidade de regeneração e de encontrar, dentro de si, soluções mais ou menos inovadoras. Será que o mesmo acontecerá, desta vez, perante o que alguns designam por grande recessão? Ninguém, nem sequer os mais pessimistas, arrisca equacionar uma ruptura no modelo económico e político. Acresce que algumas das economias mais pujantes (como a China e o Brasil), embora dirigidas por partidos socialistas, têm no mercado - mais ou menos tutelado, admita-se - um mecanismo central de afectação dos recursos. Ainda assim, fica a estranha sensação, em muitos dos países aflitos (de que hoje nem os Estados Unidos se podem excluir), da ocorrência de uma contradição de tipo novo, porventura com uma capacidade autodestrutiva que não somos capazes de antecipar. Refiro-me à dessintonia entre a esfera real e a esfera financeira da economia. Agentes a operarem nesta última, em larga medida responsáveis pela actual recessão, continuam em roda livre, como se nada se tivesse passado, a ditar juízos que se auto-confirmam e cuja racionalidade é, por isso mesmo, à primeira vista difícil de descortinar. Cria-se uma tempestade perfeita para quem a ela assiste no remanso do ar condicionado dos seus gabinetes, de onde ordena operações, quiçá em conflito de interesses, que podem condenar países, empresas, investidores e trabalhadores. Na maior parte dos casos, nem estará em causa a justeza da apreciação inicial sobre a capacidade dos países solverem as suas dívidas, mas o beco sem saída para onde os mesmos são empurrados, tendo como resultado o que se antecipara, mas com efeitos colaterais mais profundos e dolorosos em termos de destruição de riqueza e de exclusão social. Mesmo quando tudo parece sereno, a tensão está latente, a revolta pronta a explodir. A inesperada eclosão de violência em Londres não poderá ser expressão disso mesmo? Aquela visão parcial, atenta apenas a interesses particulares, específicos, toma por adquirido que as reformas estruturais que propugna nunca porão em causa (não incluem?) o edifício democrático. Qual a garantia? E se, quase duzentos anos depois, Marx tivesse razão?
P.S. No nosso caso, a conjugação de razões como as referidas com a necessidade de ajustarmos o nosso nível de vida com o valor da riqueza que produzimos conduziu a uma situação de emergência social que se combate com medidas, porventura pouco ortodoxas, conjunturais, à medida. Quando uma pessoa como o padre Lino Maia, visceralmente envolvido nas acções de solidariedade social e combate à pobreza, subscreve o essencial do programa, é ridículo ouvir a esquerda retórica clamar contra o mesmo.