É profundamente chocante deparar com os rostos de James Foley e de Steven Sotloff nas imagens de primeira página publicadas na Imprensa e na abertura dos noticiários das televisões, servindo de ilustração às ações terroristas. Porque as vítimas tinham o direito a que o Mundo não as visse tal como os terroristas entenderam exibi-las, submetidas à sua brutalidade e reduzidas a mero instrumento de satisfação dos seus desígnios criminosos. O reconhecimento do rosto - o único rosto identificável aos olhos do espectador da cena macabra da execução - transforma-se no remate final de um processo de desumanização feroz para o qual os terroristas nos pretendem aliciar.
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A encenação do horror apela sempre à construção de um nexo de cumplicidade emocional entre o espectador e o carrasco. Os autos de fé do "Tribunal do Santo Ofício" privilegiavam a "purificação" pelo fogo para esconjurar os ímpios e os hereges, embora recorressem também ao esquartejamento e à forca. O "Terror", na Revolução Francesa, cedeu a uma inspiração humanitária que determinou a substituição do machado pela guilhotina... mas não travou o ritmo das execuções. Na história europeia, além das cruzadas e das "guerras santas" entre cristãos, encontramos os mais diversos exemplos da ritualização e encenação de atos de barbaridade, invariavelmente construídos como espetáculo punitivo para cimentar fidelidades e exorcizar inimigos reais ou imaginários.
De entre os europeus que fugiam ao terror das perseguições religiosas, conta-se grande parte dos colonizadores da América do Norte. A dimensão espetacular inerente às ações terroristas apenas iria esmorecer na Europa depois do desfile de horrores das duas guerras mundiais que culminou na revelação do holocausto nazi. O terrorismo contemporâneo não difere substancialmente dos anteriores: nem pela brutalidade dos militantes nem pelo número de vítimas imoladas nos seus altares.
Na vaga terrorista que agora se propagou do Norte do Iraque ao Leste da Síria identifica-se o mesmo padrão. Convém esclarecer que o grupo terrorista que se designa a si próprio como "Estado Islâmico", embora disponha de mais amplos recursos financeiros e militares, não é de facto um "estado" ou sequer um "califado". Tal denominação é apenas o rótulo adotado pela mais recente modalidade de terrorismo internacional que efetivamente se diferencia das antecessoras por duas características relevantes.
Em primeiro lugar, pela inédita expressão territorial que conquistou numa região vasta previamente desestruturada pela brutalidade a que têm sido submetidas as suas populações ao longo das últimas décadas. Em segundo lugar, pela promoção habilidosa da sua exposição mediática, garantida por uma gestão folhetinesca das redes sociais onde cada episódio anuncia novas manifestações de "sangue e pavor". O extremo sectarismo de que enferma poderá seduzir ainda novos recrutas, designadamente entre os mais jovens e também nos países ocidentais, mas acabará por conduzi-los a um crescente isolamento que, aliás, já é notório.
Não se duvide porém que por muito efémero que venha a ser o "Estado Islâmico do Iraque e da Síria", outros movimentos terroristas com imprevistas configurações e idêntica perigosidade se encarregarão de tomar o seu lugar, segundo a mesma lógica, seguindo o mesmo rasto de destruição das guerras e dos títeres expeditamente entronizados, onde a cobiça dos recursos naturais se sobreponha ao respeito pelos povos, envenene a cooperação entre vizinhos e destrua as instituições políticas próprias. Alarga-se o fosso entre a opulência e a pobreza que estimula os populismos, corrompe a cidadania e ameaça até o funcionamento das democracias do Ocidente. O valor da dignidade humana está no centro da mais ambiciosa construção política da modernidade - o Estado de direito. É por isso intolerável a exibição das vítimas entregues aos seus executores, não menos que a indiferença perante os corpos desmembrados nas desoladas ruínas de Gaza.