Terrorismo e "Estado mínimo"
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A aparição do chamado "Estado Islâmico do Iraque e do Levante" tem suscitado múltiplas reflexões e, como era de esperar, tornou-se pretexto para os diagnósticos mais contraditórios. Há mesmo quem sustente o paradoxo de que a ocupação fulminante deste vasto território que se estende do Iraque até à Síria é a demonstração de que afinal quem tinha razão era George W. Bush, quando decidiu promover e consumar a invasão e a ocupação militar do Iraque, com o pretexto de implantar uma democracia constitucional! Saddam Hussein, parece necessário recorda-lo, era então descrito como a principal ameaça à paz mundial e o seu regime classificado como o grande baluarte do terrorismo internacional.
E assim se perdeu a oportunidade de aproveitar o fim da Guerra Fria e o ambiente de distensão e confiança que por algum tempo ainda perdurou entre os antigos rivais, para erguer os alicerces de uma nova ordem internacional fundada no Direito e nas instituições reformadas de uma nova Organização das Nações Unidas. Em vez disso, foi declarada a "guerra contra o terrorismo" que desde o Afeganistão e o Iraque iria alastrar à Líbia, ao Mali ou à Síria. O desinteresse e a negligência a que foi votado o processo de paz na Palestina desembocou agora nos massacres da Faixa de Gaza. E a guerra atingiu por fim a Ucrânia, no centro de uma Europa ainda mal refeita do morticínio que não soube prevenir entre os povos da antiga República Federativa da Jugoslávia, expeditamente desmembrada.
Deplorei nesta coluna, há uma semana, a implantação insensata do "terrorismo" no centro de uma nova "doutrina militar". A "guerra ao terrorismo" é uma expressão absurda, nos seus próprios termos, sempre que pretenda ser algo mais que uma metáfora. Claro que o terrorismo se combate também pelo recurso à força, mas os meios militares são incapazes de destrinçar a teia complexa de crenças, instituições e mediações culturais capazes de impedir a generalização da violência a todas as dimensões da vida social e acabam por apagar até a distinção essencial entre "nós" e "o inimigo", entre "terrorismo" e "guerra convencional". Os "homicídios seletivos", os aviões de combate não tripulados, a sofisticação tecnológica dos sistemas de vigilância e do armamento, indiciam uma preocupante fragilização dessa fronteira. Essa mesma fronteira que o terrorista do "Exército Islâmico do Iraque e do Levante" pretende derrubar quando desafia o exército americano, através de um vídeo, na Internet, a ir combate-los no terreno.
Oque se passa com a "guerra" é um processo análogo ao que está em curso na economia global. Quanto mais se "desregula" a economia e o funcionamento das instituições financeiras, mais as relações de domínio se substituem aos sistemas normativos e se avantajam os poderes de facto sobre as regras e os direitos. Quando emergiu do fim da Guerra Fria, a "potência virtuosa" num mundo multipolar submisso à sua supremacia militar, não se cuidou de reforçar os instrumentos de controlo público e democrático indispensáveis para compensar os estados fragilizados pela marcha inelutável do processo de globalização. Pelo contrário, uma precipitada "constitucionalização" do direito internacional iria reclamar um ambíguo "dever de intrusão por razões humanitárias" que chegou a ser invocado para legitimar a invasão do Iraque. Até foi criado um "Tribunal Penal Internacional" que não chegou a perturbar os falcões da 2.ª Guerra do Golfo e cuja utilidade aguarda, até hoje, por clara demonstração, por exemplo, na Ucrânia, na Síria, no Egito, no Iraque ou na Faixa de Gaza.
A ideologia do "Estado mínimo" continua a inspirar o desgoverno do Mundo e a asfixiar as funções do Estado com os dogmas do equilíbrio orçamental, enquanto os paraísos fiscais permanecem intocáveis e os grupos terroristas conseguem financiamento fácil, abundante e discreto, para alargar a sua atuação.