A Constituição da República está transformada num autêntico saco de boxe entre Esquerda e Direita. Tratando-se da bússola orientadora do Estado, formatada através de um mínimo de dois terços dos representantes do povo e suscetível de atualizações periódicas, dispensar--se-iam tantas e tão profundas desinteligências de interpretação...
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Ao Tribunal Constitucional compete, naturalmente, velar pelo cumprimento da Lei Fundamental; descartando as dúvidas sempre e quando se colocam. Ao Executivo e aos partidos políticos com assento parlamentar exige-se, entretanto, o bom senso de não executar ou propor decisões suscetíveis de aviltarem o enunciado na Constituição.
À mercê da imposição da introdução de modificações estruturais, os últimos tempos têm sido marcados por sucessivas decisões do Tribunal Constitucional. Designadamente na construção de orçamentos do Estado balizados pelas exigências de um emagrecimento ao nível da despesa pública, tem sido o Governo contrariado sempre e quando ousa colocar em xeque direitos adquiridos. O exercício de redução do défice deixou há muito de poder ser consumado pela conversa fiada em redor dos chamados consumos intermédios e, por isso, ampliam-se as dificuldades. O chumbo à eliminação dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos é apenas e só um exemplo.
Sim, poder-se-á sempre considerar a impossibilidade prática de exercitar cortes nas principais alíneas da despesa do Estado: Assistência Social, Educação, Saúde e... salários da Função Pública. É impraticável proceder a ajustamentos rápidos na despesa mantendo intocáveis os direitos adquiridos pelos cidadãos nestas áreas.
O balanceamento entre o exigível para o saneamento das contas públicas e o consagrado na Constituição gera naturais dificuldades. Inexistindo entretanto a hipótese de proceder a uma revisão constitucional, tantas e tão graves são as dissensões entre (parte da) Esquerda e Direita, é imperativo não atirar para cima dos juízes do Tribunal Constitucional o ónus - ou os desejos - de veto de algumas decisões programadas para o curto prazo. Os doutos guardiões da Constituição não serão bacteriologicamente puros, mas são pagos para dar provas de (total) independência. Aguentando pressões, legítimas ou disparatadas.
Sob o espetro de novos conflitos, parte do futuro de médio prazo do país joga-se na construção do Orçamento do Estado de 2014. E, para não variar, um naipe de decisões corre o risco de bater nas paredes do Palácio Ratton, obrigando a reformatação de contas ou, o que seria um desastre, novo e indesejável aumento de receitas por via de insuportáveis impostos.
O ritmo diabólico dos dois últimos orçamentos do Estado tem este ano uma boa variante: o Governo, em vez de afrontar o Tribunal Constitucional, partiu para a legislação prévia em domínios essenciais, como o da chamada Mobilidade da Função Pública - fórmula cínica de advogar despedimentos - e já teve no presidente da República um aliado quando resolveu enviar para fiscalização prévia o desejo de Passos Coelho & C.ª. Com prazos encurtados, o pronunciamento do Tribunal Constitucional conterá várias vantagens. Por um lado, seja qual for a decisão, fará doutrina e colocará fim à tal competição doentia entre Esquerda e Direita; por outro lado, evitar-se-á um bloqueio na projeção do Orçamento.
A constitucionalidade dos despedimentos resolverá parte de um problema bicudo; o chumbo servirá para o convencimento geral, incluindo a troika, da impossibilidade de emagrecimento da Função Pública (e do défice do Estado) a curto prazo.