A pouco e pouco, a constatação de que a situação actual é, mesmo, difícil vai assentando. Não é uma boa notícia. Contudo é melhor do que continuarmos a enganar-nos, a sonhar com um passado que não voltará se não mudarmos. E muito. A começar pelo Estado e a acabar em cada um de nós. A começar no Estado paquidérmico, com uma voracidade insaciável e tiques autistas. Vive para si, à custa dos outros. Vendeu ilusões e criou uma legião de dependentes, dentro e fora do Estado. Ignorando a realidade, chamou direitos ao que seriam regalias. Declarou-os irreversíveis quando eram transitórios. Projectou-os em crescendo e nem estáveis seriam. Qual hidra foi criando cabeças à medida da sua incapacidade. Chamou-lhes fundações, institutos, agências. Os genes originais depressa vieram ao de cima e o que era para ser virtuoso não tardou a mimetizar o original. Há excepções. Há sempre excepções. Sabe-se o que o povo costuma dizer das suas relações com as regras.
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Excluindo, é claro, os interesses corporativos, não há nada que estimule mais esta máquina do que a caridadezinha, os pobres, os desvalidos, o "social". Funções inalienáveis à parte, esse é o pretexto por excelência para a existência do Estado. O seu espaço próprio de actuação. O monopólio desejado.
Dir-se-ia que com razão. Quem, senão o Estado, pode garantir esta rede social de apoio? Impante, certo da resposta, assume-se protagonista. E desbarata na componente administrativa metade ou mais do orçamento, incluindo conferências e seminários para explicar a nobreza da missão. A quem se arroga intervir nesse domínio, cumprindo a missão com mais eficácia, faz saber quem manda, quem parte e reparte. A época de crise, quando essas organizações da sociedade civil, próximas dos problemas, podiam ser mais úteis, é a oportunidade para confirmar o monopólio, estrangulando-as financeiramente. Com o argumento conveniente da contenção orçamental. O mesmo que, devidamente aplicado, justificaria o encerramento de muitos desses serviços públicos, autênticos sorvedouros de recursos face aos resultados alcançados.
Muitas IPSS representam o que de melhor fomos capazes de fazer, fora da tutela do Estado. É tempo de tocar a rebate. Não esperemos que a máquina estatal vá além dos discursos e das promessas. É nestas alturas que se vê a grandeza de alma dos que mais têm. Não se lhes pede que façam um "Giving Pledge" (compromisso de doar a maior parte da fortuna para fins filantrópicos - ver givingpledge.org) à portuguesa. Mas que tal reforçar os donativos para algumas das organizações exemplares que atravessam dificuldades? Por exemplo as que apoiam crianças e idosos doentes. Se, em simultâneo, houvesse disponibilidade para apoiar a respectiva gestão, tanto melhor. Ao evitar a extinção destas instituições, ao torná-las mais eficazes, não só se ajuda quem precisa, como se retira aos burocratas estatais um argumento para o eventual alargamento do seu âmbito de actuação. Se o Estado já tem dificuldades em se reformar, seria irónico sermos nós, com a nossa inacção, a fornecer-lhe desculpas para se expandir.