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A enorme diferença entre o método usado por Vítor Gaspar quando nos transmitia os resultados - e respetivas consequências - da avaliação da troika ao nosso comportamento e o modo anteontem utilizado por Paulo Portas, coadjuvado pelas ministra das Finanças, não está apenas na aparência: está também na essência. É sobretudo esta última que assusta.
Quando o ex-ministro das Finanças aparecia, o povo tremia. E com razão: para o bem e para o mal, Gaspar dizia ao que vinha e dizia-nos o que aí vinha. Portas apenas nos disse ao que vinha: não disse o que aí vinha. Ora, perder de vista o que aí vem é o mesmo que fechar os olhos quando chegamos em alta velocidade a uma curva apertada.
O Orçamento do Estado para 2014 que o Governo apresentará este mês elucidar-nos-á quanto à intensidade da dor que estamos obrigados a sofrer durante o próximo ano e os que se seguem. Quando conhecermos o documento perceberemos melhor os contornos deste filme de ficção montado pelo Governo e pelos estimados representantes da troika.
Que ficção? A ficção que resulta do facto de, conluiados em nome de interesses estritamente políticos, Governo e troika desejarem fazer--nos crer que o pior já passou. A questão é esta: ninguém, em bom rigor, pode dizer que o pior já passou, porque os riscos que temos pela frente são de monta. De tal monta que podem constituir-se numa espécie de bomba-relógio. Ninguém deseja que ela estoure, mas quem não ouvir o tiquetaque está a envolver a realidade num papel muito bonito, mas muito frágil.
É verdade que a economia começa a dar ligeiros sinais de melhoria. Imaginando um (desejável) cenário em que esses sinais ganham corpo, ficamos, ainda assim, muito longe de poder garantir que o crescimento chega para ir pagando a colossal dívida. O ponto é este: a recuperação económica pode chegar rapidamente ao Excel de Passos Coelho, mas demorará muitos anos a chegar ao bolso dos portugueses. É essa diferença temporal que pode fazer espoletar a bomba-relógio.
Os portugueses estão exangues, é verdade, mas o pior que se lhes pode dizer é que o pior já passou. Ou que, um dia, tudo voltará a ser como já foi na Educação, na Saúde, no acesso à habitação e ao dinheiro barato, na carga fiscal a suportar, no emprego, no regresso dos famigerados direitos adquiridos. Não será.
Depois do resgate da troika vem aí, no mínimo, um programa cautelar que não nos será entregue de mão beijada. Vale o mesmo dizer: o oxigénio que nos fornecerão custará caro. E ainda falta, é bom não esquecer, a famosa reforma do Estado que o vice-primeiro-ministro ficou de apresentar aos portugueses. É decisivo que o faça já: e que não continue a passar, com o jeito que se lhe conhece, por entre os pingos da chuva.