Calhou-me ser menino num tempo sem consolas eletrónicas. Jogávamos à bola, fazíamos a Volta a Portugal em sameirinha (carica, noutras paragens) e encenávamos incríveis tiroteios entre polícias e ladrões, índios e cowboys. Melhor se tivéssemos pistolas de fulminantes: poupávamos a voz à simulação dos tiros. Como não fui à tropa, nunca empunhei uma arma de fogo. Nem os meus companheiros de brincadeira se tornaram criminosos.
Ora, ao ver o cantor Dino d"Santiago proclamar a ideia de mudar o Hino Nacional, despindo-o de armas e canhões, lembrei-me, antes de pensar em pistolas, de uma das célebres entrevistas históricas de Herman José, em que D. Afonso Henriques dizia (cito de cor): "No meu tempo, a gente só sabia andar à porrada!"
A violência está, de um modo ou de outro, na génese da maior parte dos países europeus. Claro que na fundação de Portugal não havia canhões, era tudo corrido à espadeirada, mas o hino que a República veio a adotar (A Portuguesa) foi composto em 1890, tempo de artilharia operacional. Era uma reação ao ultimatum inglês, inspirada n"A Marselhesa ("Aux armes, citoyens!", às armas, cidadãos!). Muitos mais hinos têm referências bélicas, como o italiano ("Siam pronti alla morte", estamos prontos para morrer) ou o americano ("The bombs bursting in air", as bombas rebentando no ar), e as coisas devem ser ensinadas e compreendidas, não transformadas em causas da guerra ou entraves à fraternidade universal.
Os símbolos nacionais não existem por recreação. Reforçam uma noção que, bem ou mal, nos permite viver em comum, aceitar (a custo) a existência de impostos, torcer pela seleção de futebol, comer bacalhau, saber quem é o Quim Barreiros. Não existimos sem o que nos precedeu. Sem coisas que reconhecemos como nossas, independentemente de nos reconhecermos nelas. E que é isso de nos reconhecermos? Se resulta da incapacidade de perceber os factos no seu contexto histórico, mais vale estar quieto. Estas ruturas com o passado, assentes em tresleituras da história, além de serem despropositadas, contribuem fortemente para dividir a sociedade entre extremos antagónicos. Ainda agora o Brasil nos mostrou no que isso dá, mas a malta insiste.
*Jornalista
