Quem alguma vez dominou um ofício sabe por experiência própria que há pelo menos quatro patamares de aprendizagem: 1.º, quando não se sabe nada e se tem a noção de que não se sabe nada; 2.º, quando se sabe alguma coisa mas julga-se que se sabe tudo; 3.º, quando se sabe muito mas pensa-se que não se sabe nada; e, 4.º - porque, como escreveu Hélia Correia, "A erudição é uma aprendizagem, a sabedoria é um triunfo" -, quando se sabe tudo e se tem a noção de que se sabe muito.
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O bastonário dos Enfermeiros parece ter ficado pelo segundo patamar da aprendizagem e, mais delírio menos delírio, pretende agora alargar as competências dos seus colegas (contra a vontade de muitos) a todo o tipo de actos médicos a que o ministro lhe permita deitar a mão - seja a gestão de receitas dos doentes crónicos, a prescrição de exames complementares de diagnóstico ou o acompanhamento de grávidas -, de modo a que possa ganhar a vida a brincar aos médicos ainda que não tenha formação para isso. Ávido de poupar dinheiro - e acossado com a enunciada greve nacional dos médicos em defesa de si, leitor, e do Serviço Nacional de Saúde -, o ministro acaba de aprovar a enigmática figura do "enfermeiro de família", um saco que não se sabe bem o que contém mas onde pode vir a caber de tudo.
Todos conhecemos a fábula: estava Picasso num jardim a pintar quando uma senhora lhe pediu um retrato que não demorou mais do que 5 minutos a fazer; espantada com o preço, a dama perguntou por que razão pedia ele uma quantia tão elevada por um retrato que lhe levara 5 minutos a realizar. "Minha senhora" - indignou-se o mestre cubista - "eu não levei cinco minutos a fazer este retrato mas 50 anos e 5 minutos".
Ora, para quem não sabe - ou lhe dá jeito ignorar - o ofício médico quando bem praticado carece de um dificílimo percurso de aprendizagem, de um longo treino no diagnóstico de uma infindável lista de doenças, de uma capacidade fora do comum no seguimento de patologias tantas vezes imponderáveis e de um avisado sentido crítico na execução de actos médicos; a prescrição de fármacos, os exames complementares de diagnóstico e a especialidade de Obstetrícia são superiores exemplos disso.
Sinto até uma certa ternura por essa tentaçãozinha tão nacional de "dar um jeitinho" na competência do vizinho, por repetidamente a ver fazer. Fica-se a julgar que se sabe! Mas esse tipo de luxúria bebe do mesmo facilitismo que levou o insigne José Sócrates a criar turbo-licenciaturas de 4 anos para formar pseudo-médicos, não importa se mal formados! Imagino sempre essa turma a operar de livro de instruções aberto - sendo o doente, o leitor!
Olamentável é que políticos - que deveriam ser gente ajuizada - legalizem este tipo de fraude em desprimor da ciência enciclopédica e da lenta sapiência dos tratados. Ignora-se a teoria e glorifica-se a prática. O que o bastonário dos Enfermeiros parece ignorar é que seria igualmente fácil ensinar um técnico superior de saúde a ministrar uma injecção (de Glucagon, por exemplo...) ou a permeabilizar uma via aérea, apesar de "eles não terem conseguido média para Enfermagem!"; como seria igualmente fácil ensinar uma auxiliar de acção médica a medir tensões arteriais na enfermaria - indo depois ver à cábula o que significará 19/9 - ou, já que estão por ali, a chapar em cima de uma ferida um penso de Betadine.
Mas o bastonário dos Enfermeiros não quer nada disso, pois não? Então por que será que usa dois pesos e duas medidas quando se trata de açambarcar actos médicos a jusante versus perder, a montante, certos actos de enfermagem?
Fechado num castelo de cartas, como num teatro de marionetas, o imperador Paulus Macedus vai lançando uns contra os outros (usando a Comunicação Social), dividindo para reinar. Sabe que estas controvérsias saem dos escombros do marxismo, de uma sociedade sem classes - utópica e medíocre - que às elites faz tábua rasa, e onde todos tocam de ouvido, já ninguém toca de pauta.