Há semanas que me debato com um estado de alma, que me é periodicamente habitual. O que sou, o que fiz, para que ainda servirei, pelo que ainda devo lutar? Preocupação constante ao comum dos cidadãos?
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Nem pensar. Muitos de nós nem nunca chegamos com estas questões ao nível do consciente, outros passam por elas, fugazmente, num momento mais afogueado da existência. Foi assim que escolhi a profissão. Filho de uma classe média bem remediada, fazia a ponte entre os "ricos" da terra e uma maioria de filhos de pescadores, maioritários na escola que frequentava. Confesso que sempre me pendeu o pé para fazer frente com eles contra os copinhos de leite do "bairro da estação". Era já a costela "social-democrata".
Nessa época, o meu coração balanceava entre as fardas reluzentes dos bombeiros e o apelo da personalidade do médico mais querido da terra, meu padrinho de batismo, verdadeira encarnação do João Semana.
Cedo pendi para o lado do meu padrinho, não fora até ele aliar a bonomia humana do Semana, com uma pose de Príncipe de Salinas. O médico bonzinho mas galã. Que melhor arquétipo referencial poderia existir para o imaginário de um pré-adolescente contemplativo e solitário.
E foi nessa solidão de filho único que, com 16 anos menos uma semana, embarquei para o Porto para iniciar o estudo de Medicina.
Filho único tradicional, sociável mas hipertímido, adorava e praticava todo o tipo de desporto. Fora dessas horas vivia para o estudo e para a leitura de tudo que tivesse letras. Fiz-me homem no caldo de cultura da introspeção solitária.
Foi na leitura das entrelinhas dos jornais que me fiz democrata, na leitura da "Vida Mundial" que fui arregimentado, "avant la lettre", para o sá carneirismo e foi com Saul Bellow, Steinbeck e principalmente com Hemingway, Malraux e Greene que me fiz um "aventureiro temperado pela crueza do realismo".
Licenciei-me e pertenci a uma geração que percorreu em cinco anos as aldeias de Portugal. Fizemos muita asneira, mas ajudamos muita gente e aprendemos bastante. Ao mesmo tempo tive a felicidade de ter sido convidado para nesse mesmo período dar uns saltos ao Porto para ser assistente da minha Faculdade.
Já embalado no Internato de Pediatria decidi emigrar, com a necessidade de fazer um "up grade" profissional que me empurrasse para fora de alguma mediocridade prevalecente.
Tive a felicidade de ter sido contratado como interno residente no Hospital Necker, em Paris.
Anos magníficos, passados entre a correria matinal da "banlieue" para o trabalho, a leitura do Paulo Coelho no metro e a corrida até à Étoile para comprar o "Expresso" e a "Bola".
Foi neste contexto que adoeceu uma criança que à época não podia ser tratada em Portugal. Hospitalizei-a em Paris. Era neta de Fernando Brochado Coelho, presidente do PSD do Porto. Durante as visitas ao neto era convidado a entrar na vida política ativa. Durante anos recusei.
Fui recusando, até que um dia vim fazer uma perninha de um mês. Fiquei até hoje!
Mudei a minha vida, fruto de um acaso, mas também de uma decisão.
Entre 1987 e 1991, conciliei a Medicina com o cargo parlamentar. Em 1991, tive de a abandonar para assumir funções governativas.
Em 1996, quando ponderava o regresso à Medicina surgiu--me o desafio de Gaia, onde venci quatro eleições com maioria absoluta e onde, sem falsas modéstias, tenho a noção que contribuí para trazer a terceira cidade de Portugal do Terceiro para o Primeiro Mundo.
Até perder as eleições autárquicas de setembro passado, ainda tive tempo para ser 12 anos presidente do PSD Porto, líder do PSD Nacional e candidato a primeiro-ministro e conselheiro de Estado, cargo que ainda mantenho. Muito tempo dedicado aos outros, pouco dedicado aos meus.
Mas foi com esse episódio que a minha vida mudou radicalmente. Constatei que me entreguei a tudo aquilo por que passei com paixão abnegada, com espírito de missão. Pensei pouco em mim e ainda menos naqueles que mais amava. Vi a 29 de setembro centenas de figurantes desertarem, foi, contudo, uma experiência muito educativa. Até porque não foi, não é, essa a atitude do povo na rua.
Dessa depuração ficou um pequeno núcleo de fiéis a que se juntaram rapidamente outros novos crentes vindos do nada. Com essa "equipa" começamos de imediato a conceptualizar projetos, empresas e iniciativas. Vi assim renascer o velho entusiasmo de há 20 anos, mas só que depurado do lixo dos interesses.
Durante estas semanas absorvi uma mudança de paradigma. Sou jovem e saudável para os padrões atuais, tenho uma boa genética, com pais vivos e cheios de saúde na casa dos 90, desejo imitá-los em longevidade, qualidade de vida e, principalmente, em felicidade. Já estou a preparar com o mesmo entusiasmo os próximos grandes 30 anos.
Não vou pois deixar de me bater por causas, como sempre o fiz, mas com verdadeiros amigos ao meu lado, só que desta vez escrupulosamente rastreados. Todavia, tudo farei com a moderação que me permita fazer de uma família o centro do meu mundo.
Assim, este artigo visa ser tão-somente pedagógico e mostrar a uma cidadania muitas vezes mal informada que políticos somos todos nós, uns mais, outros menos, de acordo com os solavancos da vida.
Sou supersticioso. Muito. Por exemplo, o facto de ser sistematicamente o número 14 na escola salvou-me de ir num lugar 13 de um autocarro onde morreu o meu colega de carteira. A partir daí, sempre que posso jogo no 14, mas sabendo que não é o destino que faz dele um "fetiche", mas sim o facto de eu o continuar a escolher.
A superstição só condiciona o arbítrio, não o substitui. No fundo, o importante é sermos sempre nós os últimos decisores do que ao nosso futuro diz respeito.
E não nos esqueçamos de que, nem que seja por minutos, todos somos, no pior, e no melhor, "políticos", ou seja, cidadãos normais. Essa consciência fará de todos nós mais interventivos, mas porventura mais tolerantes e humanos com aqueles que decidem com o nosso mandato.