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A Igreja Católica está mergulhada numa das mais sérias crises da sua história. Com uma agravante em relação aos anteriores períodos de perturbação: hoje, a velocidade com que a informação corre coloca sobre a Igreja - e, acima de tudo, sobre o seu máximo responsável, o Papa - uma pressão esmagadora.
A cada dia que passa, a cada nova notícia sobre alegados actos de pedofilia praticados por sacerdotes, cresce a sensação de estarmos perante uma daquelas histórias que ameaçam não ter fim. O desafio para Bento XVI e para a "sua" Igreja é, por isso, tremendo.
O cardeal Saraiva Martins, comentado a tragédia, disse há dias que a Igreja é pela "tolerância zero", mas que se recusa a "lavar a roupa suja" em público. Infeliz expressão, a do cardeal: foi justamente por não ter aplicado "tolerância zero" aos casos de suposta pedofilia que se conhecem há muitos anos que se chegou a este ponto.
Há, obviamente, muitas causas para este degradante efeito. Mas uma delas está, parece-me, à frente das outras: o entendimento que a Igreja tem sobre a sexualidade. Ou melhor: a incapacidade que a Igreja demonstra em tratar os problemas da sexualidade, execrados sobretudo quando se fala de preservativos, homossexualidade ou, pecado dos pecados, o recurso ao aborto. O maniqueísmo nunca foi bom conselheiro, mas a Igreja insiste nele.
Gravo na memória um elucidativo episódio desta maneira abstrusa de olhar e analisar a sexualidade. Há duas décadas e meia, o meu professor de Religião e Moral, pároco de uma pequena vila transmontana, mostrou-nos, através dos antigos diapositivos, imagens de fetos retalhados. Tudo para nos fazer ver como o inferno é o único lugar indicado para as mulheres que decidem abortar. O exemplo vale o que vale, mas tem, creio, a virtude de apontar o modo escolhido para "catequizar" o povo...
Bem sei que hoje os métodos são diferentes. Mas são apenas os métodos, porque os fins permanecem, genericamente, os mesmos. A moral que a Igreja prega, cujos princípios são apreciáveis, está há muito em crise. A perda de influência junto dos crentes, o aparecimento de outras "religiões", a globalização, tudo contribui para ajudar a desmoronar este edifício secular. Isso e os próprios padres. Há dias, num notável artigo no "Público", o jornalista António Marujo lembrava que o celibato e a formação nos seminários, muito limitadora dos afectos, também ajudam a explicar o que está a passar-se. Assino por baixo.
De modo que, quando o cardeal Saraiva Martins fala em tolerância zero, toca no ponto. Lamentavelmente, toca ao contrário. Foi por ter fechado os olhos a ignomínias que conhecia e por querer continuar a fechá-los que a Igreja permitiu que aqui chegássemos.