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Há duas tendências nas redes sociais que parecem glorificar um regresso ao passado no que diz respeito às conquistas de direitos das mulheres. A moda das chamadas “trad wives” (esposas tradicionais) e a romantização da total abnegação materna no cuidado dos filhos parecem colher muitíssimos adeptos nas redes e o debate está aceso, entre aquelas que dizem que isso representa um retrocesso na conquista do espaço público pelas mulheres (que muita luta tem exigido) e uma romantização do trabalho doméstico e reprodutivo (historicamente explorador da força vital feminina) e as que defendem que o feminismo lutou pelo direito a sermos o que quisermos e que, portanto, escolher ser uma esposa extremosa, mãe a tempo inteiro, é tão legítimo como querer ser CEO de uma empresa.
Ambos os argumentos são verdadeiros. Sendo que é preciso perceber se é, de facto, uma escolha livre e se, estando enquadrada numa tendência mediática e num movimento cultural e político, não contribui ativamente para promover ideais e doutrinas religiosas ultraconservadoras (que são muito significativas nos EUA) ou, na Europa, para a defesa de políticas neoliberais de desinvestimento na educação e políticas de apoio às famílias (ambas dinâmicas muito perigosas para as liberdades das mulheres).
É que estas “trad wives” ou “influencers” de maternidade tendem a ser praticantes do ensino doméstico e advogam a total dedicação das mães ao cuidado dos bebés, demonizando as creches e defendendo o tal direito de escolha, muitas vezes na demanda de políticas que paguem por ela, ou seja que depositem o investimento na família e não no sistema público de educação. Ora, além da falta de consciência coletiva deste tipo de perspetiva, em grande medida elitista, há vários perigos que são ignorados, da queda de qualidade do ensino, à sua total doutrinação por cartilhas religiosas, passando pelo isolamento das crianças, que quando em situações de abuso, negligência ou subnutrição, ficam completamente à mercê das suas famílias.
É que do lado das mulheres até pode ser uma escolha, mas dizer que é ideal para uma criança ficar em casa com a mãe na primeira infância, como se fosse uma regra universal, é ignorar que há muitas circunstâncias e fatores que podem tornar essa situação nefasta. Tal como pode ser “trendy” glorificar o lugar da esposa-mãe tradicional, normalmente muito jovem, com muitos filhos, cozinheira de mão cheia, em casas lindíssimas e com uma beleza estonteante (veja-se Hannah Neeleman ou Nara Aziza). Mas é dourar muito a pílula da vida doméstica, porque a realidade das mulheres comuns (que a história pode comprovar amplamente) está sempre muito mais próxima da sobrecarga, da exaustão e da anulação da individualidade das mulheres.