Um procurador da República que desempenhava funções no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) pediu uma licença ilimitada e foi trabalhar para uma instituição bancária de Angola (ou em Angola). Aparentemente nada de anormal, pois a possibilidade de uma licença ilimitada está prevista na lei para qualquer funcionário do Estado. Porém, o referido magistrado estava ligado à investigação da criminalidade económica e financeira e consta mesmo que terá investigado o banco em causa. O Conselho Superior do MP, por proposta de um advogado, foi chamado a pronunciar-se no sentido de apurar qual a empresa que tinha contratado o magistrado, mas, estranhamente, a proposta foi rejeitada com o voto de qualidade (depois de um empate a sete votos) da procuradora-geral da República (e presidente do CSMP), que votou no sentido de o procurador não ser obrigado a revelar o nome da empresa para onde foi trabalhar.
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O caso suscita várias questões, sendo que a primeira delas tem a ver com os motivos que levam um magistrado do MP, ligado à investigação da criminalidade económico-financeira, a deixar as suas funções e ir trabalhar para uma instituição financeira privada. Quais as especiais aptidões técnicas desse magistrado na área para que foi convidado? Admitindo que possui realmente essas aptidões, onde e como as adquiriu? Será que foi no exercício de funções no MP? Por que é que ele foi, realmente, convidado?
São preocupantes as respostas que podem ser dadas a essas perguntas, preocupação que aumenta quando se verifica que o próprio magistrado se recusa a revelar o nome da instituição financeira para onde foi trabalhar e que o órgão do MP que detém a competência para fiscalizar os seus membros abdica de o saber. Não estamos em presença de um simples funcionário público que encontrou um emprego melhor. Estamos perante um magistrado que promove a realização de escutas telefónicas (que as ouve ou lê as respetivas transcrições), que dirige buscas a empresas e revistas; um magistrado que, no exercício das suas funções, acumula uma enorme quantidade de informação que pode ter um incalculável valor económico.
Sejamos ainda mais claros: será que esse novo emprego lhe foi oferecido em troca de algum favor que o referido magistrado tenha feito a algumas empresas visadas em investigações criminais? Será que esse novo emprego é a vantagem em troca da qual o magistrado terá praticado atos em violação (ou não) dos seus deveres funcionais? Ou será apenas porque no exercício das suas funções públicas acumulou informação cobiçada pelo agora seu patrão?
Em face da opacidade com que o CSMP e a PGR atuaram neste processo todas as perguntas são possíveis e todas as respostas também. A ministra da Justiça anda, há mais de ano e meio, a encher a boca (e os media) com propaganda anticorrupção e em favor da transparência, mas uma das suas mais destacadas escolhas (a PGR) opta pela opacidade num caso que deveria envergonhar qualquer país decente. Por que é que o CSMP e a PGR querem subtrair o caso ao escrutínio público? Um magistrado deixa as suas funções para ir trabalhar para uma empresa privada da área em que incidiu a sua ação de investigação criminal e os principais órgãos dessa magistratura não querem saber sequer o nome dessa empresa privada? E querem também impedir o país de o conhecer?
Os magistrados não são feitos de carne diferente da de quaisquer outras pessoas, incluindo os detentores de outros poderes do Estado. Eles são homens e mulheres iguais a quaisquer outros, com as mesmas grandezas e as mesmas misérias. E se a corrupção e o tráfico de influências são muito mais reduzidos entre eles do que entre os titulares de cargos políticos ou da Administração Pública tal não se deve ao facto de os magistrados terem sido iluminados por qualquer chama divina ou ungidos por óleos sagrados mas sim por estarem sob o permanente escrutínio dos advogados. É a parcialidade dos advogados na defesa dos interesses que patrocinam que obriga os magistrados a serem imparciais nas suas decisões. Não foi por mero acaso que a proposta para o CSMP apurar o nome da empresa que contratara o magistrado foi apresentada por um advogado.