Corpo do artigo
Nos últimos dias tem vindo a subir de tom o debate em torno do próximo Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN). Não admira que assim seja. Num momento em que o investimento público se encontra paralisado em razão do que parece ser o único grande objetivo do Governo - o controlo do défice orçamental - um montante de financiamento por parte da União Europeia que ronda os 22 mil milhões de euros e pode chegar aos 25 mil milhões tem um enorme peso na definição das políticas do setor público e condicionará muitas das decisões de investimento do setor privado.
Concebidos para a promoção da coesão económica, social e territorial entre os países da UE e entre as diferentes regiões no interior de cada país, através de cofinanciamento, os fundos comunitários têm sido sempre, em última análise, uma forma indireta de ajuda financeira aos orçamentos de cada um dos estados-membros. Daí que, em tempo de vacas magras, o apetite para aceder a esses meios seja ainda mais forte.
Até aqui, o debate a que temos assistido tem muito pouco a ver com a definição da estratégia para o desenvolvimento regional que o Governo enunciou ou com as prioridades estabelecidas pela UE para a concessão das ajudas previstas. Tem a ver, isso sim, é com o poder de decidir e influenciar a distribuição das verbas disponibilizadas. É dos livros. Entre nós, com mais ou menos nuances, a Administração Central tem procurado chamar a si a exclusividade de decidir sobre a atribuição dos vultuosos meios que jorram da cornucópia dos fundos comunitários, logo desde o primeiro Quadro Comunitário de Apoio em 1989. Certo é que nunca o fez sem dor. A grande maioria dos parceiros institucionais indispensáveis à boa utilização destes fundos, por imposição de Bruxelas, sempre contestou o hipercentralismo que assumiram os sucessivos governos. Mas na hora da verdade, ou seja, na hora de decidir quem tem ou não acesso aos meios financeiros, o tom foi baixando e os governos foram quase sempre decidindo em circuito fechado.
E se antes era assim, agora arrisca-se a ser pior. A obrigatoriedade de disponibilizar a contrapartida financeira nacional que complemente os fundos comunitários colocados à disposição é, nos dias que correm, mais difícil de satisfazer do que em qualquer dos quatro anteriores programas concedidos pela União Europeia. A situação do país hoje não tem paralelo com os tempos de crescimento e de facilidade de crédito que se viveram nas duas décadas em que se utilizaram esses fundos. Daqui decorre logo uma evidência - o investimento público resumir-se-á ao desenhado no QREN. Governo e municípios, com as limitações financeiras que vivem e viverão nos próximos tempos, têm apenas este significativo instrumento para mostrarem obra e sensibilizarem os eleitores. Com eleições em contagem decrescente e apenas medidas impopulares para apresentar, os dinheiros ainda não comprometidos deste novo QREN podem constituir a tábua de salvação para o Governo. Depois de tanta austeridade, finalmente apareceria a protagonizar algo de positivo.
Por isso a guerra que se instalou entre Vítor Gaspar e Santos Pereira, quando ainda eram ministros. E, também por isso, a pressa de Poiares Maduro em tornar claro que nem o ministro das Finanças nem o da Economia terão interferência no controlo destes fundos, que só a ele cabe.
Na mesma situação do Governo estão os municípios. Exauridos de meios financeiros, limitados na sua capacidade de endividamento e com dificuldades no acesso ao crédito, ser parte relevante na utilização destes meios é, para a maioria deles, a única forma de responder aos anseios das populações. Só que o Governo fecha-se na sua concha e não permite interferências. Só ele é que sabe, só ele é que decide. Daí que os autarcas protestem, com a legitimidade democrática que lhes assiste. Mas, com toda esta opacidade, poderiam fazer outra coisa? Poderia a Associação Nacional dos Municípios Portugueses deixar-se marginalizar? Poderia Rui Moreira e alguns outros autarcas não se fazerem ouvir, quando sabem o que está em jogo e quando o próprio presidente da CCDR Norte, dependente hierarquicamente de Poiares Maduro, tem manifestado publicamente as suas apreensões?
O que está em causa é uma justa repartição interna dos recursos que promova a coesão económica e social no território nacional. Para isso há que tornar claros os critérios de distribuição dos meios, dialogar com os parceiros indispensáveis ao sucesso do programa e acompanhar a sua execução para evitar desvios. Até aqui, não foi assim. Esperemos que o seja no futuro. E então, sim, o ministro poderá dizer com razão que a guerra não existe.