<p>Mesmo depois de anunciados os nomes propostos para o novo Governo, não posso deixar de relatar uma chaga da Saúde. Devo dizer que, na área, já vi de tudo. Conheço enfermeiros e médicos que pedem meças aos melhores especialistas do Mundo. Sei de muitos que fizeram da profissão sacerdócio, e que estão 24 horas por dia ao serviço do próximo. Sei de vários cujo salário empalidece perante os dos gestores de certas empresas deficitárias, quando é certo que cumprem uma função social inexcedível e insubstituível. Mas já tive de obrigar (com presença policial) um clínico a assinar um termo de responsabilidade, por se recusar a ver - noite dentro - uma filha minha, que considerava caso menor, e que acabou por ter de ser operada, in extremis. Por outro lado, presenciei, em dois nascimentos, a excelência, a sofisticação e a ternura da obstetrícia e do internamento do "Garcia de Orta", ali ao lado dos braços abertos do Cristo Rei. E conheço muitos hospitais bem equipados, imaculados, autênticos hotéis para os desvalidos, com níveis de serviço a que nenhum privado aspira.</p>
Corpo do artigo
Quando cheguei ao "S. Francisco Xavier", há oito anos, com o meu pai em estado desesperado, estava assim preparado para o melhor e para o pior. O hospital fica nas traseiras do antigo forte do Alto do Duque (que um dia bombardeou os avisos rebeldes, ensaiando juntar-se aos republicanos, em Espanha, e hoje alberga o SIED) e nas imediações do Colégio de S. José.
Voltei, infelizmente, e recomecei por verificar uma dramática evidência, que se agravou com o tempo, e que explode hoje na cara dos utentes.
Planeado para pequena clínica privada de apoio, o estabelecimento é hoje tratado como um grande hospital da periferia lisboeta. Recebe muitos sinistrados das vias maiores que unem as cercanias à capital. Tem um movimento constante, com casos de gravidades diversas, mas comportando muitas situações extremas.
O "S. Francisco Xavier" é servido por uma soberba equipa de médicos, enfermeiros e pessoal de apoio. Possui uma secção policial, e ambulâncias de prevenção. Mas não tem condições mínimas, e isso repercute-se no ânimo de todos os que lá trabalham.
O espaço - sobretudo das urgências - é exíguo. Homens e mulheres, crianças e adultos amontoam-se em macas, como nos quadros horrendos dos caldeirões de Auschwitz.
As triagens são feitas num cubículo infecto. As zonas de isolamento para a gripe A resumem-se a um lúgubre alpendre e a um contentor, com miseráveis formas de segurança.
Nas salas de espera, apinhadas, vagueiam aranhas. Não há ar condicionado em sítio algum, e no Verão é melhor não aparecer, para não ficarmos infectados "com algo ruim".
As obras recentes vieram tornar o caos numa massa sangrenta. Muitos médicos desesperam, muitos enfermeiros carregam uma cruz que ninguém devia ser obrigado a transportar.
Ao lado, um complexo moderníssimo, bem equipado, com serviços de maternidade, subaproveitado, subocupado, quase vazio. O hospital não se pode expandir para aí, porque, alegadamente, os fundos europeus usados para a construção previam, apenas, cuidados de ginecologia e obstetrícia.
Rodeado de bairros populosos, perto de zonas problemáticas, em cima de linhas de risco, ninguém espera que o "S. Francisco Xavier" possa fazer milagres. Mas alguém tem de denunciar um cancro inadmissível, que faz do bairro do Restelo uma espécie de quarteirão do pior Terceiro Mundo.
Que a ministra que continua a tratar-nos da saúde pense nisto.
E olhe com olhos de ver.
E não se contende com visitas e inaugurações de fachada.