Corpo do artigo
No telejornal da noite, a seguir às cerimónias fúnebres de homenagem às vítimas do trágico atentado de Nice, depois dos apupos que mimosearam os membros do Governo francês ali presentes, foi exibido um ritual insólito. Um monte de entulho assinalava o local onde foi morto o autor do ato terrorista e, ali mesmo, transeuntes anónimos escarravam e depositavam lixo. Em frente ao televisor, sozinho com o meu neto de sete anos, não encontrei as palavras certas para lhe explicar essa manifestação brutal e repulsiva que pretende equacionar com o puro horror do ato criminoso a violência simbólica de um gesto fútil e grotesco. E não encontrei as palavras certas porque, em boa verdade, não existem palavras para descrever tão cruel boçalidade. Porque é a dignidade humana que faz da vida um bem valioso e porque nela se funda, no essencial, a condenação da violência terrorista e de todas as formas de barbárie. A abolição da pena de morte, progressivamente adotada pelas democracias constitucionais europeias, não foi decretada como um ato de piedade para com os piores criminosos nem como concessão ou condescendência para com as suas ações inaceitáveis. Exprime um elementar princípio de sobrevivência de sociedades civilizadas que reconhecem no respeito pela vida e pela dignidade humana o antídoto contra a voragem tribal da retaliação sanguinária e da vingança.
Porém, o mesmo ritual insólito e anónimo exibido pelos blocos noticiosos dessa noite sugere também uma metáfora perturbadora para o impasse em que se atolou o próprio projeto europeu, entre a incerteza de um destino comum que parece cada vez mais distante e os egoísmos nacionais que fraturam e amesquinham as expectativas generosas outrora alimentadas pelos seus povos e sustentadas por governantes nacionais e instituições comunitárias.
De facto, apesar da demonstração sistemática da insuficiência dos meios militares e policiais no combate à ameaça terrorista, as respostas parecem continuar a confinar-se ao prolongamento dos estados de exceção e à promessa de mais bombardeamentos nos sítios do costume. Claro que a fanfarronice não chega para encobrir a ausência de uma participação enérgica nas inconclusivas negociações dos processos de paz no Médio Oriente... Incapaz de envolver os seus vizinhos do Sul do Mediterrâneo em projetos de cooperação e desenvolvimento que os possam redimir do caos e da desgraça promovidos pela criminosa intervenção no Iraque, a Europa nada fez para contrariar o desespero desses povos e continua a empurrá-los para um embate fatal contra as muralhas erguidas nas fronteiras do Velho Continente. E ao mesmo tempo, porventura nostálgica dos tempos da Guerra Fria, reforça o aparato militar a Leste como se o Pacto de Varsóvia, ao contrário da NATO, não estivesse há muito extinto.
Enquanto a demagogia da extrema-direita populista continua a crescer, o Governo inglês decidiu fazer um referendo sobre a permanência do Reino Unido na União cujo resultado, paradoxalmente, desorientou até os seus mais fervorosos adeptos. Mas nem o choque da secessão britânica atenuou o zelo dos burocratas da Comissão Europeia, que reclamam a punição exemplar da Espanha e de Portugal pela alegada violação do pacto orçamental. Entre os cadáveres dos refugiados, o golpe ou contragolpe da Turquia e a ameaça de desagregação que sopra do canal da Mancha, prevalecem os instintos suicidários dos responsáveis europeus.
Serão todos insensatos? Não! Há uma exceção. Durão Barroso, o anterior presidente da Comissão, cumpridos apressadamente os 18 meses de "nojo" imposto pelas normas europeias, acaba de se alistar ao serviço da Goldman Sachs. Palavras para quê? São dos principais beneficiários das "dívidas soberanas" geridas pela presidência de Durão. Paulo Rangel, no "Público" de ontem, acusa os inúmeros críticos de Barroso de ultrapassarem "o limite do decoro e da dignidade pessoal". Quais serão então os limites de Barroso?
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL