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As auto-estradas são as redes sociais do asfalto: embora nos liguem, ficamos mais expostos aos trolls. Especialmente durante as férias, quando a pressa na estrada é em proveito próprio. Ter um acidente a caminho da praia deve magoar menos do que ter um acidente a caminho do trabalho.
Por exemplo no outro dia, uma visita ao Porto. VCI nocturna, VCI noir. Faixa da esquerda à velocidade normal da nossa espécie durante uma ultrapassagem. Surgem atrás de nós dois clarões que são evidentemente de raiva. Dois máximos de fúria: o troll está a vinte centímetros do meu carro e exige passar.
Mas eu, H. sapiens sapiens, não quis. Confesso aqui o meu momento de humilhação. Em vez de o deixar passar, abrandei com calma. E todo ele se incendiou por dentro. Embora não o visse atrás dos faróis, sabia que ele era assim: homem (as ocorrências femininas nesta espécie são raras), estatura mediana, abrasado pela própria estupidez, T-shirt justa de uma qualquer marca - compacto, e a espumar da boca.
Lá me ultrapassou pela esquerda, pela direita, pela berma. Tanto faz. Depois disto, num mundo ideal em que os encontros entre os sapiens e os trolls são apenas momentâneos, seguiria o meu caminho. Porém, mais à frente, ei-lo na berma à porta do carro. Todo ele tal como o imaginara. Até a T-shirt, e talvez bêbado. Estacionara à minha espera.
Meti pela saída rumo às ruelas portuenses, volveram uma e duas rotundas aparentemente livre de troll. Mas aparece novo clarão de raiva, nova ultrapassagem agora apertada. O carro do troll quer, pode e manda, de súbito à nossa frente e travando a fundo em regime de quebra-ossos e de quebra-vidros. A porta abriu-se. Se lhe tivesse dado tempo, adivinhar-se-ia o homem pegando num taco de baseball.
Mas não dei: e agora o volante dançou nas minhas mãos. Ruas desapareceram, semáforos vieram e foram, passeios acenaram. O troll ficou para trás, agarrado ao taco imaginado, triste na sua solidão destrutiva, sem saber de mim. E eu próprio sem saber de mim, e da electricidade que me passara entre as mãos e os pés para electrizar desse modo o carro, que ficara Fórmula 1.
Mas o erro é primordial, vem do início dos tempos, e não depende do desenlace. Os escritores maiores, que bem têm alertado para ele, diriam assim: entre espécies diferentes, o silêncio é o melhor diálogo. Eu, que errei berrando com um troll na estrada e por vezes erro também com trolls nas redes sociais, digo apenas: deixando-os em paz, talvez sofram as consequências sozinhos.
O autor escreve segundo a antiga ortografia