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Agora podemos falar de Trump em latim. Escrevê-lo tão impressionante quanto figuras históricas, quase míticas, das quais ainda hoje vem uma aura de espanto e de pecado. Quer dizer: “Donald Trump tam tenebrosus et periculosus est quam Caligula”.
Depois do debate com Biden, da decisão do Supremo quanto à imunidade presidencial, de descartado o processo dos documentos de Mar-a-Lago e adiada a sentença do caso Stormy Daniels, e agora com J. D. Vance, o escolhido para vice-presidente que dá juventude à candidatura, faltava a Trump o teste da bala para se tornar à prova de bala.
Bastou o debate, escrevi aqui, para lhe abrir os portas da Casa Branca. O desequilíbrio entre Biden e Trump foi trágico. Biden precisava de provar ser quem já não é, um homem apto - e Trump precisava apenas de provar ser quem é, um homem inapto.
Mas veio o atentado, a bala cujo percurso uma fotografia captou a meio centímetro do assassinato, e o político que já era imune à política sublimou-se. Trump agora é outra coisa, um monstro inderrotável. Tornou-se criador e criatura, perpetrador e vítima. A América divisa que o próprio criou - o clima de desconfiança, de ataque pessoal, de “inimigação” do oponente e de propaganda sem escrúpulos - virou-se momentaneamente contra ele pela mão de um desgraçado de vinte anos. E a partir desse momento o grande divisor pôde ser o grande pacificador.
“Trump sobreviveu a um atentado, Biden sobreviverá às gaffes?”, perguntava ontem uma parangona. O patético da pergunta traduz a disparidade insanável entre os candidatos. Para um, uma bala é tão inofensiva como uma gaffe. Para outro, uma gaffe é tão letal como uma bala.
Entretanto chegaram as teorias da conspiração (mais válidas quando são invenções sobre pessoas de quem não gostamos), mas é inegável que a bala era para matar e que Trump não morreu por acaso. E também acho inegável que a sua reacção fica para a história: quantos teriam sido capazes de aproveitar a quase morte para se eternizarem? Quantos ergueriam aquele punho?
Nada disto tem que ver com política. Nada disto tem que ver com política há muito tempo. A criatura Trump, o homem ungido, o sobrevivente que evoca a mão de Deus, já não é deste mundo. Vive de aura, vive de paixão e de devoção - até há quem lhe acenda velas. É tenebroso e perigoso como figuras históricas que achávamos irrepetíveis. Quase poderíamos falar dele em latim. E, claro, também em latim poderíamos dizer-lhe “vade retro”, mas já ninguém nos livra deste parente de Calígula.