Como se podem anunciar medidas restritivas, como o subsídio de desemprego e o subsídio de reinserção social e assegurar viagens semanais a Paris a uma deputada de Lisboa?
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Quando se chega do estrangeiro, mesmo que se tenha saído por muito pouco tempo, fica-se sempre com a sensação de que se chega de outro planeta e que o país não é o mesmo que se deixou dias antes. Olhamo-nos, com um certo olhar exterior, e surpreendemo-nos mais que habitualmente.
Aconteceu-me esta semana quando, acabada de chegar, tomei consciência de que desabava sobre nós toda a gravidade da crise. Os mercados, as agências, a sra. Merkel, a União Europeia e o euro tinham-se unido, colocando-nos à beira do abismo numa manhã negra em que pairava sobre nós Zeus e Aros, vindos directamente dos céus da Grécia. Ouvi, com preocupação, as palavras dramáticas do ministro das Finanças que, cheio de olheiras, explicava as urgentes medidas necessárias à salvação da pátria. Fiquei, como certamente todos os portugueses ficaram, cheia de preocupação pelo futuro que se anunciava. Estive assim o resto da manhã. À tarde, porém, ouvi as palavras de um fresco ministro das Obras Públicas, sorridente, a sossegar o mesmo país, esclarecendo que tudo se mantinha, exceptuando um troço menor de uma auto-estrada. As grandes obras públicas que hão-de pôr na história o governo de José Sócrates estavam, afinal, seguindo o normal curso dos compromissos do governo e os deuses gregos recolheram ao Olimpo.
Serão os dois ministros do mesmo Governo e do mesmo país? O que terá acontecido à hora de almoço? Estados de alma do primeiro-ministro oscilante entre Aros ou Eros?
Mas se das obras públicas ficaram apenas em causa uns quilómetros de auto-estrada, soube-se logo que o Governo ia ser rigoroso a verificar os abusos do subsídio de inserção social e ia reduzir o valor do subsídio de desemprego a quem vier a ficar sem trabalho. Assim estava estabelecido no PEC e o Governo tem de o cumprir, com urgência, para sossego do Mundo, das agências, da União Europeia, da sra. Merkel, dos mercados internacionais, explicavam.
No dia seguinte, o primeiro-ministro afirmou, convicto, no Parlamento, a sua política para acabar com a crise: negá-la, fingir que não existe, como sempre tem feito, e declarar que estamos com ligeiros sintomas de melhoria. Nós e a Europa.
A verdade, os números, a transparência são certamente conceitos antiquados e pouco pós-modernos de governar.
É, porém, uma evidência que numa situação como a que atravessamos, em que corremos o risco de gerar dramas e sofrimento, todas as decisões políticas que se tomem para responder à crise, particularmente as que choquem com os direitos básicos das pessoas economicamente mais frágeis, têm de ser implementadas com um grande sentido ético, com uma imensa noção de justiça e em nome do bem comum. Se assim não for, não só se corre o risco de estarmos a um passo de grandes convulsões sociais, como se encontrará inevitavelmente resistências onde se podia encontrar solidariedade.
Como é possível retirar uma percentagem do subsídio de desemprego a quem perdeu o trabalho e manter as bonificações imorais nas empresas de participação do Estado? Como se pode tentar acabar com os abusos do subsídio de reinserção social quando se aceita que uma deputada eleita pelo círculo de Lisboa resida em Paris para efeito de pagamento de viagens e de ajudas de custo? Não se pode e não se deve porque é imoral e injusto.
Um dos grandes males nacionais é haver a generalizada ideia de que os sacrifícios são sempre para os outros e, no entanto, o exemplo é o caminho seguro para a exigência. A crise que se vive hoje nas sociedades ocidentais é claramente e é, sobretudo, uma crise ética. Como se pode anunciar que não há outro remédio senão retirar uma percentagem do subsídio de desemprego a um pai ou a uma mãe de família que ficou sem trabalho e assegurar viagens semanais a Paris a uma deputada de Lisboa e manter os prémios nas assembleias-gerais aos gestores de empresas participadas pelo povo sem que ninguém core de vergonha.
O país não merece um tão triste 1.º de Maio. Não foi para isto que se fez o 1.º de Maio.