"Não podias ficar nesta cama comigo/em trânsito mortal até ao dia sórdido/canino/policial/até ao dia que não vem da promessa/puríssima da madrugada/mas da miséria de uma noite gerada/por um dia igual" ("Um adeus português", Alexandre O"Neill)
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Há quem defenda com a convicção nos dentes ou quem acredite profundamente em profissão de fé. No fundo, duas formas de torcer muito para que seja verdade. Já que não se pode nacionalizar porque está em todo o lado, omnipresente, não falta quem lhe queira atribuir uma nacionalidade: Deus é brasileiro, muitos crêem. A ser verdade que a origem vem do berço, Deus deixou o Brasil suspenso em orfandade aquando da votação do "impeachment" de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados em Brasília. Abandonado e à sua sorte. Acredito porque vi. Um (a)deus brasileiro não pode traduzir-se num "Tchau, querida" sem que haja castigo divino.
Portugal não deve olhar para o que aconteceu no Brasil com lentes de superioridade intelectual, como um velho colonizador trocista. Até porque, depois da surpresa indisfarçável pelo espectáculo das declarações de voto de cada um dos deputados, somos confrontados com a nossa falta de conhecimento e percepção. Criámos uma ideia novelística ou veraneante do Brasil e esquecemo-nos do seu tamanho, assimetrias e grandeza. Esquecemo-nos que o Brasil não é "made in Europa", fica mesmo na América Latina. É longe, não se serve em imagem 16:9. Espantámo-nos pela iliteracia e anedotário dos deputados brasileiros sem pensar que são poucos os representantes do Portugal profundo que permitimos ter visibilidade para serem alvos. Não se aponta ao que não existe perante os nossos olhos, ainda que seja a nossa mais profunda realidade. Evitamos a chacota à nossa custa porque não nos colocam um espelho à frente. Acabamos, comprometidos, tranquilizados por eleger uma suposta elite que representa os brutos que nós somos mas não sentimos ser.
O mais chocante na votação do processo de "impeachment" ou "golpe de Estado" (aquele estado de suspensão da democracia "à la Ferreira Leite") não é tanto o comportamento histriónico dos deputados, protagonistas inadvertidos dum filme burlesco de Fellini, juntos ao vivo e a cores num Brasil onde tudo parece agora julgar-se a preto e branco. Indigna é como se elogiam assassinos e torturadores, como se estivéssemos perante a melhor licitação de um crime num leilão de bugigangas. Chocante é perceber que todo um povo que grita por dignidade, democracia e justiça no Brasil está nas mãos de um fenómeno de corrupção que não conhece um lado com fronteira à vista, onde não há impolutos, onde não há Deus sem adeus ou abandono. Como escrevia O"Neill, o dia que já "não vem da promessa". No Brasil, vem da certeza que aparece "por um dia igual".
O autor escreve segundo a antiga ortografia