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A jovem brasileira falava de uma casa-abrigo, em local não nomeado, e a sua voz e cara chegavam longínquas ao ecrã do tribunal, podia estar a rodar na órbita de Marte. Alice falava da noite em que se escondera do namorado e o mistério de lhe ter dado a localização por telefone, quando tentava fugir dele.
- Dei a localização para mostrar que estava com uma colega.
- Mas porquê?, perguntou a juíza.
- Porque, para ele, eu estava com outro homem. O meu erro foi lhe ter dado a localização.
- Mas dar a localização a quem a ameaçava, porquê?...
- Porque ele me ameaçou que, se não desse, um dia me ia encontrar e que me matava.
Segundo Alice, era possível. Uma vez, no carro, "ele veio a alta velocidade, tentando tirar minha vida e a dele". Agora, Armando chegara de um mês de trabalho electrotécnico em França e não encontrara Alice em casa dele. Telefonou, mandou mensagens assustadoras, e ela finalmente atendeu e deu a morada. Era a casa da colega da clínica de cosmética, Josane.
- Ele entrou na casa dela, aos gritos, "onde é que está, onde é que está"?! Na cabeça dele, só pensava que eu estava com outro homem. "Eu vou matar você e esse homem". Foi ver todos os quartos, mostrou a pistola. Disse que, se eu não fosse com ele, ia fazer merda na casa da minha amiga.
- Mas ele ameaçou-a com a pistola?
- Não só mostrou a arma, como a levantou, ameaçando a mim e à minha colega.
Armando ordenou-lhe que viesse com ele.
- Eu fiquei com muito medo. Eu disse "não, não vou". Mas havia uma criança na residência, chorando muito. E eu a pensar que ele me ia matar. Ele tirou a arma da cintura, apontou assim e, não sei como é que fez... fez um barulho assim: tschk, tschk!
Bom, afinal sempre havia um homem na casa, o cunhado da colega, a dormir profundamente. Lá no éter de onde chegava a sua imagem, os cabelos lisos, a voz de Alice tremeu um pouco.
- Por sorte, não acordou, porque tinha bebido muito vinho. E como o Armando estava armado, eu rezava com a Josane para que ele não acordasse.
- Porquê?
- Porque era um homem e iria tentar intervir, se acordasse.
Parece que assim são, os homens. Alice disse que no início dos cinco meses de relação Armando não mostrava ciúmes porque estavam juntos dia e noite, ela até ia para o trabalho dele, mas que se ficasse em casa ele ligava de cinco em cinco minutos. Não aceitou que ela começasse também a trabalhar.
A procuradora, nas alegações, falou em "relação tóxica causada por características dos dois" em "típico caso de violência doméstica" mas, tendo em conta que Armando está integrado e não tem cadastro, pediu pena de prisão suspensa para o réu, na condição de prestar provas e de nunca tentar contactar a ex-namorada. A advogada de Armando, pelo contrário, defendeu que nada do que Alice dissera fazia sentido, nem a pistola, nem o dar-lhe a localização de onde estava, nem afinal haver um homem, um cunhado, na casa e tão embriagado que nem sequer acordara na berraria. Isto é, sugeriu, porque "é preciso separar o trigo do joio", que foi tudo uma encenação de Alice para, depois de encontrar um namorado português, desencadear um incidente, chamar a polícia, ir parar a uma casa-abrigo e, como vítima, conseguir rapidamente o passaporte português e comunitário. A voz de Armando, no tribunal, era sumida, como saída de um sonho. Há vídeos com Armando a ameaçar matar-se porque não consegue viver sem ela.
Alice continua na casa-abrigo de onde falou para o tribunal. Podem viver um sem o outro, isso podem.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)