Um bebé morto não devia ser cor-de-rosa
Talvez a maior perversão da bolha transparente em que nos movemos seja a crescente vulgarização da intimidade. O que antes era guardado, hoje exibe-se com bonomia no plateau das redes sociais, em busca de compaixão, aprovação ou outra coisa qualquer.
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Um like, um comentário, um sinal que contribua para humanizar a nossa condição, ora frágil, ora exultante, transformando a dor ou a alegria individual numa catarse coletiva. Tudo piora quando a escala deixa de ser a da nossa microesfera e passa a planetária, porque aí outros valores (no sentido económico e filosófico) se levantam.
Há dias, o cantor John Legend e a mulher, a modelo Chrissy Teigen, perderam um filho durante o parto. O bebé, que iria chamar-se Jack, virou notícia mundial, ao ser exibido, embrulhado num lençol e já cadáver, nos braços da mãe, que partilhou tudo no Instagram, onde é seguida por mais de 30 milhões de almas. Uma produção fotográfica duríssima, a preto e branco, onde Chrissy surge desamparada e em lágrimas, numa cama de hospital, ao lado do companheiro e pai. Alguém os fotografou naquele momento de tristeza profunda. E, no mesmo registo permissivo, ambos decidiram difundir as imagens que não deviam ser de ninguém.
É sempre arriscado definir os limites do razoável, nesta e noutras situações, porque, em rigor, estaremos sempre a impor um código moral sobre a intimidade dos outros, mas não devemos deixar de nos inquietar com o caminho arenoso onde vamos metendo os pés. Um bebé morto não devia ser uma publicação "cor-de-rosa" com origem numa rede social que terraplana assuntos e estados de alma, por mais que nos digam que, para aquele casal mediático, os seguidores são como família. E que é habitual escancararem as portas de casa a essa família que eles nunca viram. Houve quem tivesse aproveitado o "exemplo" para expor as suas próprias histórias de perda, houve quem lembrasse que, nos Estados Unidos, um em cada 160 bebés são nados-mortos, mas mesmo esta perspetiva benigna de uma realidade tão crua não deixa de ser uma desconstrução habilidosa de um bem que se quer sagrado: a nossa intimidade. Que é como quem diz os nossos segredos, a nossa dor, a nossa identidade. A vida que é só nossa e não precisa de testemunhas.
*Diretor-adjunto