Há muitos anos, Flórido de Vasconcelos escrevia que o Porto, "apesar de tudo quanto tem sofrido, ainda apresenta um caráter, uma individualidade únicas no nosso país". Sabia que o congelamento das rendas, que perdurava desde a 1.ª República, destruíra os seus "padrões construtivos de raiz pequeno-burguesa" e era responsável pela decadência e esvaziamento da cidade. Compreenderia, seguramente, a importância da reabilitação urbana que está em curso no Porto.
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Agora, a Porto Vivo SRU, que é responsável pela reabilitação, corre o risco de ser municipalizada, abandonada pelo Estado por decisão de um Governo que ora anuncia grandes projetos nacionais para Lisboa, como é o caso da Trafaria, ora ignora as legítimas aspirações do Porto.
Não falta, até na cidade, quem critique o baixo ritmo da reabilitação (esquecendo que, quando o projeto foi lançado, e num ambiente bem mais favorável, Jorge Sampaio nos advertira que se tratava de uma tarefa para uma geração) ou quem defenda que deve ser o município a arcar com o investimento, o que é injusto, na medida em que o congelamento das rendas não foi decidido pelo município, e também inaceitável, porque este não deve arcar com todos os custos de um projeto cujos benefícios tem impacto em toda a economia nacional e nas contas do Estado.
O investimento público na reabilitação urbana tem um efeito de âncora, com benefícios transversais, cujo impacto transcende a economia da cidade. Sabe-se que cada euro investido pelo setor público na reabilitação resulta num efeito multiplicador na indução do investimento privado.
No quarteirão das Cardosas, por exemplo, o investimento público inicial teve um efeito motor sobre o investimento privado, que literalmente arrastou, numa proporção de 1 para 15. Deixando de lado o aspeto relevante na atração sobre as atividades do turismo, o investimento privado na reabilitação ronda os 90 milhões de euros, enquanto o investimento público líquido (o investimento da SRU deduzido do encaixe previsto com a alienação das habitações e dos espaços comerciais) ronda os 6 milhões de euros. Ora, calculando a receita fiscal de IVA associada às obras de reabilitação, no mesmo período, o total da receita ronda os 13 milhões de euros. Falta ainda considerar o acréscimo das receitas de IRC, IMT, IMI, imposto de selo, IRS e contribuições para a Segurança Social geradas pelas obras de reabilitação e pela localização de novas atividades e negócios. Ou seja, o projeto resulta num benefício líquido direto para as contas públicas.
Olhando para a reabilitação no Porto num prazo mais longo, e abarcando todo o universo reabilitado, sabe-se que, entre 2005 e 2012, o investimento privado direto em reabilitação urbana (aquisição de prédios, obras, licenças, projetos, etc.) na ACRRU atingiu os 508 milhões de euros. Um valor ainda assim subavaliado porque, até 2010, só inclui os dados relativos aos quarteirões sob gestão da Porto Vivo e porque respeita apenas ao investimento na reabilitação dos edifícios e não abarca nem as obras que não necessitam de licença ou comunicação prévia nem o investimento em equipamentos pelas empresas que lá se localizaram. No mesmo período, o investimento público em reabilitação urbana e requalificação do espaço público não excedeu os 52 milhões de euros. Ou seja, por cada euro de investimento público os privados investiram, em média, 10 euros.
Em suma, a reabilitação é um investimento público virtuoso, que tem um impacto direto na economia nacional, em que, além disso, o custo para o Estado central é muito menor do que as receitas que gera. Não podemos, por isso, aceitar que o Estado se desresponsabilize por este projeto que, além disso, foi inovador a nível nacional, foi elogiado internacionalmente, é estratégico para o turismo de toda a região e tem uma perspetiva intergeracional. Não podemos tolerar que o Estado rapte os recursos da região e depois se recuse a participar ou abandone investimentos virtuosos, como é o caso da reabilitação urbana, que não podemos interromper ou abrandar.