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Quem conhece um serviço de quimioterapia ficou certamente petrificado diante da capa do "Jornal de Notícias" da passada terça-feira: "Crianças com cancro tratadas nos corredores". De acordo com o relato jornalístico, esse caos no Hospital de S. João soma já alguns anos. Todavia, apenas depois de a situação ter sido ampliada por um jornal, se conquistou um agendamento público do problema. Eis aqui os média noticiosos a cumprirem uma função estruturante do seu campo: monitorizar e contribuir para o normal funcionamento das instituições.
A notícia surgia em manchete. Dentro do jornal, duas páginas relatam uma situação intolerável: crianças com doenças oncológicas obrigadas a fazer tratamentos de quimioterapia em corredores. A Unidade do Joãozinho, para onde são encaminhadas quando têm de ser internadas, funciona há quase dez anos em contentores. As fotografias que enquadram as notícias são aterradoras. E perturbam. Muito. Ao ler esse oportuníssimo trabalho jornalístico, as perguntas acumulam-se: como é possível isto acontecer há tanto tempo? Os responsáveis do hospital tomaram alguma posição mobilizadora de vontades? E o que fizeram os diferentes atores políticos ao longo destes anos? A resposta a estas perguntas não é conhecida, mas sabemos que houve duas partes que se uniram na denúncia: os pais de algumas crianças doentes e o "Jornal de Notícias". Os primeiros, no meio de uma doença que absorverá as suas forças, encontraram espaço para desobscurecer serviços que trabalham em condições inenarráveis; o "Jornal de Notícias" conseguiu criar, a partir do relato noticioso que construiu, uma estrutura circular de informação, levando os principais noticiários dos canais de rádio e televisão a colocarem esta notícia no topo dos alinhamentos. E isso obrigou vários atores sociais a tomarem posição pública. E a comprometerem-se com uma solução.
No próprio dia da publicação da notícia no JN, o presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de S. João, em conferência de Imprensa, reconheceu que as condições de atendimento pediátrico são "miseráveis". E as perguntas que se impõem são as seguintes: essa conjuntura arrasta-se desde quando? Neste tempo, o que fez o Hospital de S. João para procurar minimizar essas condições indignas? Na quarta-feira, os deputados de Esquerda e de Direita indignaram-se com o ministro das Finanças a quem acusaram de estar a bloquear a construção da ala pediátrica do Hospital S. João. Mário Centeno garantiu que o avanço das obras será feito de forma concreta e não com fotografias de primeiras pedras lançadas sem dinheiro, numa alusão ao que aconteceu na anterior legislatura. No Parlamento, vários políticos levantaram o dedo em direção ao titular das Finanças. É certo que Centeno tem explicações a dar, mas as diferentes bancadas não podem ilibar-se da responsabilidade de não terem promovido um consistente debate político sobre o caso. É preciso não esquecer que este problema não surgiu agora e, neste tempo, não houve uma mobilização significativa para começar a resolver este caos.
Pela multiplicação de declarações dos últimos dias, a situação dos cuidados pediátricos, nomeadamente ao nível da oncologia, parece estar a encaminhar-se para uma resolução. E isso aconteceu devido a uma notícia publicada no JN com grande destaque. Foi uma acertada opção editorial. Com isso, cumpriu-se uma das funções vitais do jornalismo: o de ser um dos garantes de um sistema democrático cujas instituições devem funcionar com algum equilíbrio. Neste caso, os jornalistas fizeram aquilo que os responsáveis do hospital e os diversos atores políticos não foram capazes: procurar garantir a mínima qualidade no tratamento oncológico de crianças com cancro. Eis aqui um importantíssimo sinal da vitalidade do jornalismo e da respetiva profissão. Quem insiste em anunciar o ocaso deste campo deveria deter-se nestes exemplos. Com atenção.
PROF. ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UMINHO