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Quem aterrasse em Portugal há meia dúzia de meses e assistisse à tomada da escadaria da Assembleia, parecer-lhe-ia bizarro as forças da ordem se encontrarem (com Jean Valjean) do lado inflamado da barricada. Porém, honra seja feita a este jornal, bastaria facultar-lhe os títulos do último meio ano de vida do JN, para imediatamente se aperceber de que quem ali esteve não foram apenas as polícias mas muitos outros cidadãos, nelas, representados.
Senão, acompanhem-me nessa "narrativa": comecemos pela página 2 do JN de 17/12/2013: "Quatro em cada dez [portugueses] ficam sem dinheiro após pagar despesas". Daqui, saltemos para a página 2 de 23/1/2014: "Famílias não poupam tão pouco desde 2006". E a partir daí (dispensando página e data), sigamos o fio de Ariadne do que tem sido o insustentável quotidiano dos portugueses nos últimos tempos: "Crise destruiu 170 mil empregos jovens"; "38% dos jovens não têm dinheiro para continuar a estudar"; "Filhos dos pobres não conseguem fugir da pobreza"; "57% dos jovens portugueses querem emigrar"; "Governo faz nova purga de funcionários públicos com menos qualificações"; "Voltou a subir número de casais [em que ambos os cônjuges estão] sem trabalho"; "Portugueses entregaram sete casas por dia em 2013"; "Pensões mínimas aumentam até oito cêntimos por dia"; "Idade da reforma aos 66 desde hoje"; "Doentes com cancro esperam mais tempo por cirurgias"; "Número recorde de apelos na linha de prevenção do suicídio".
Dir-me-ão que são meros exemplos. São exemplos, é verdade, mas em semana eleitoral é apenas natural que os eleitores se interroguem sobre a tragicomédia da governação já que, acerca dos actores, os títulos são igualmente eloquentes: "PSD, PS e CDS são iguais nos tachos"; "60% das empresas portuguesas cotadas têm ligações políticas"; "Ajustes directos dispararam até 1,9 mil milhões em 2013"; "Levar um submarino à revisão vai custar até 5 milhões de euros"; e por aí adiante. Não quero deprimir mais o leitor.
É com esta jangada à deriva (onde o poder decide contra os interesses dos cidadãos que o elegeram), que o Governo anda extasiado. O poema de Thomas Hardy, "The Convergence of the Twain", ilustra na perfeição o orgulho do homem moderno ante a construção do Titanic. Por absurdo que pareça, é com semelhante vaidade na barcaça que criou que o Governo aparenta estar. Na lírica de Hardy, as estrofes desenvolvem-se com encómios aos magníficos quartos de aço, às salamandras acesas, aos opulentos espelhos capazes de encher de luz as mentes mais sensíveis apenas para oito estrofes mais tarde nos confrontar com a incontornável ironia da natureza: "And as the smart ship grew/ In stature, grace, and hue,/ In shadowy silent distance grew the Iceberg too" (E enquanto o inteligente navio se erguia/ Em estatura, graça, e harmonia,/ Na sombria e silenciosa distância também o icebergue crescia").
Não sei se os governantes lêem Thomas Hardy, sequer se têm por hábito ler poesia. Sei que, inebriados com o país que erigiram à custa do maior desfalque alguma vez perpetrado às famílias portuguesas - obra que começou com os "outros" e que "estes" têm tido a mestria de saber piorar - melhor fariam se de vez em quando espreitassem pela janela dos ministérios para perceberem que, cá fora, um icebergue cresce e que o choque será inevitável. Embora as próximas eleições sejam impassíveis de mudar (no imediato) o futuro de Portugal, o expectável é que uma grande parte dos eleitores se comporte nas urnas como se de umas Legislativas se tratasse; sendo o voto a única punição disponível em Democracia, aqueles que sentem que "isto precisa de levar uma grande volta" irão maioritariamente castigar quem "lá está", a favor de quem (ainda não há muito tempo) "lá esteve"; o desejo de mudança é intrínseco à natureza humana mesmo quando a "grande volta" que as eleições habitualmente prometem não passa de isso mesmo, de uma volta completa, de 360 graus, o que naturalmente faria sorrir Giuseppe Tomasi di Lampedusa.
Pela minha parte, entre a vulgata ardilosa dos partidos e a cor branca do icebergue, não tenho quaisquer dúvidas de que, desta vez, o meu voto vai ser gelado.
joaoluisguimaraes@mail.telepac.pt