Ultimamente o acaso - ou (quem saberá?) o ocaso - tem insistido em devolver-me dois livros que li há muito tempo e me ficaram na memória ("Uma rapariga no inverno", do poeta inglês Philip Larkin, e "Bairro de lata", do romancista norte-americano John Steinbeck), livros que sendo distintos no enredo e na geografia têm, aos olhos deste leitor, pelo menos uma característica comum: nada se passa de verdadeiramente extraordinário nas histórias que contam.
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No primeiro, Katherine Lind, uma banal mas insondável rapariga (judia alemã?, não chegamos a perceber) vive exilada num país cinzento, parado, austero, aborrecido e detesta o seu emprego como assistente bibliotecária. Não, a trama não se passa no Portugal contemporâneo mas numa Grã-Bretanha em guerra. Refém de uma terra claustrofóbica, suspensa num intervalo do tempo, Katherine limita-se a existir numa espécie de limbo sem quaisquer planos para o futuro que não o recontro previsto com o namorado, Robin Fennel, de regresso do exército, o que por se perspectivar a curto prazo adquire uma desmesurada importância. São páginas e páginas construídas na expectativa desse encontro que chega mesmo a acontecer, quase no final do romance apenas para, passada a noite, transaccionado o amor, Katherine concluir que afinal já não o ama. E de imediato regressar à vida sem outra motivação ou esperança que não a de cumprir um dia após o outro após o outro.
A ficção do americano, por sua vez, centra-se em Cannery Row, Monterey, "um poema, um fedor, uma estridência, uma gradação de luz, um som, um vício, uma nostalgia, um sonho". Num baldio cru e despojado vive Mack e os rapazes, uma assimétrica trupe de nómadas sem lei nem horizontes que não os pequenos biscates e os furtos diários que levam a cabo, a hipótese de uma noite bem passada com uma das meninas da Dora, ou a necessária subsistência diária, negociada a pulso na mercearia de Lee Chong. Nada ou pouco mais nada do que isso. Excepto, helás!, à semelhança do desacerto amoroso narrado pelo britânico, o obsessivo projecto que Mack idealiza e que alimenta toda a espessura do romance: a organização de uma festa de arromba em honra do doutor do laboratório de biologia marinha, evento aparentemente banal mas que inesperadamente adquire uma urgência existencial, como se fosse essa a solução para o ennui das personagens. Festa essa, a propósito, que corre mal. Pelo que, passado o instante, a vida volta à sua vazia normalidade sem outro desígnio ou propósito que não o de cumprir um dia após o outro após o outro.
AFeira do Livro do Porto está aí - em larga medida graças a Paulo Cunha e Silva - e apesar da tantas vezes incompreensível política de reedição de algumas editoras (atente-se ao caso de "Marca de Água", de Joseph Brodsky, inaceitavelmente esgotado há mais de duas décadas), será decerto mais fácil descobrir algum destes títulos na Feira do que encontrar lugar para estacionar em redor do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia desde que as obras começaram. Se disser que aqueles foram dois dos romances que mais gostei de ler na adolescência provavelmente não acreditariam. Porque nada de verdadeiramente extraordinário se passa nas respectivas narrativas e, para quem se delicia com a magia da linguagem, isso é verdadeiramente extraordinário.
Talvez o que aqueles livros queiram de mim seja precisamente esse nada ou (quem sabe?) seja esse nada o que não desisto de procurar. Porque (sem querer) Portugal tornou-se um país cinzento, austero, estagnado como a Europa em guerra; árido, frio, desolado como uma América sem fim; sem grandes objectivos de futuro, pessoais ou profissionais nem expectativas de esperança, individual ou colectiva. E dou comigo a pensar se não seria de regressarmos à sábia lição de Kavafis - que desvalorizava o chegar-se a Ítaca, glorificando o caminho - porque, se não nos deixam sonhar, se insistem em tirar-nos mundo, que cada livro seja único como se cada nada contasse, e - por metamorfose kafkiana - do meio de todos os nadas brotasse um recomeço para tudo.
JOAOLUISGUIMARAES@MAIL.TELEPAC.PT