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Chama-se "Volta a Portugal", foi escrito por Álvaro Domingues, geógrafo, ensaísta e fotógrafo, cidadão de Melgaço e do Porto. Edita-o a Contraponto.
É exemplo raro de um livro que surpreende e diverte, no primeiro embate com as imagens, para logo nos fazer pensativos através dos textos e, nisto, nos encarreirar para o ângulo que impõe um ponto de vista radicalmente diferente do mainstream que nos tolhe ou nos acalma, conforme os feitios.
Ao partilhar a paisagem que vê nesta sua "Volta", Álvaro Domingues tira-nos todos os tapetes em que nos temos teimosamente firmado para não escorregar: desaparece o urbano puro sem que nada seja rural, emergem múltiplos cacos que são maiores do que o Vaso que, afinal, nunca existiu, impondo-se "paisagens ordinárias, amnésicas ou genéricas como os medicamentos sem marca".
Deixa de ser possível construir uma grelha de leitura, sujeitando-nos o autor à obrigação de convocar todas as lentes que ajudem a amplificar o percurso feito por cada objeto, por cada decisão, por cada abandono. Sem qualquer garantia de que o resultado não seja novamente o "caos" pós-moderno em que vivemos.
Eu por mim, que venho convivendo há vários anos com as temáticas do desenvolvimento regional, só posso ficar muito inquieta se esta espécie de murro no estômago não for tido em conta no planeamento das políticas públicas, designadamente nas que justificam a atribuição de fundos comunitários.
Em pleno período de preparação do VI Quadro Comunitário de Apoio, será fundamental refletir sobre a desadequação da leitura ultrapassada que os documentos têm evidenciado, designadamente no que respeita às políticas ditas "de cidade", arrumadas em "centros históricos", "zonas ribeirinhas" e "comunidades desfavorecidas" e as de "baixa densidade" ou "rurais" que por sua vez procuram a "centralidade", a implantação industrial ou os serviços turísticos. Tudo diferenciado por envelopes e tudo a sobrepor-se no terreno que não é cada uma das coisas, mas muitas ao mesmo tempo.
"Como dizia Edgar Morin a propósito da Europa, que coisas destas se resumem na dificuldade em pensar o múltiplo no uno e vice-versa, o que será equivalente em pensar a identidade na não identidade" (Volta a Portugal, págs. 26/7).
O contributo extraordinário que Álvaro Domingues nos oferece é o de magistralmente conter a torrente desta diversidade nas páginas de um livro simultaneamente cristalino e desafiador.
*ANALISTA FINANCEIRA