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Sei que corro o risco de parecer obsessivo ao escrever tantas vezes sobre o nosso presidente da República, o que se justifica, porém, pela forma como tem vindo a desempenhar o seu papel, principalmente neste seu segundo mandato. Desta vez, Cavaco Silva resolveu escrever, no prefácio de um livro, um texto em que acusa de deslealdade o anterior primeiro-ministro.
Afirma Cavaco Silva, e toda a gente sabe, que Sócrates lhe sonegou informações sobre o PEC IV. Diz, a propósito, que se tratou de um dos mais graves episódios institucionais dos últimos 30 anos. Tudo isto é verdade, e foi de resto confirmado por Pedro Silva Pereira. É inegável que Sócrates, por razões que um dia serão conhecidas, não cumpriu o seu dever de informar o PR ou o líder da Oposição relativamente a um assunto que era da maior importância. Sabe-se, também, que foi por essa razão que esse programa não foi aprovado, que o Governo caiu e houve eleições, e que Portugal teve de se sujeitar à troika.
Mas nesta circunstância, parece evidente que nem o anterior primeiro-ministro nem o PR cumpriram os seus deveres constitucionais. O esclarecimento que Cavaco deu aos jornalistas, soletrando com esforço visível o artigo da Constituição aplicável ao caso, não clarifica as suas razões. A verdade é que o comportamento do anterior primeiro-ministro justificava que o PR recorresse aos seus poderes máximos. E ao não o fazer, por razões que não consegue explicar, acabou por fazer o mesmo do que Sócrates: também violou as obrigações que sobre ele impendiam, e que impunham que demitisse o Governo depois de ouvir o Conselho de Estado, em ordem a assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas. Em vez disso, Cavaco ficou mudo, e deixou que fosse o Parlamento a resolver a crise política, perdendo-se assim, muito, muito, tempo. Os portugueses não foram esclarecidos, e esse facto pode ter pesado nas eleições que se seguiram. E, por muito que Cavaco nos remeta para o seu texto para explicar a sua omissão, não há forma de entender este seu "lavar de mãos" ao deixar que fosse um outro órgão de soberania a executar uma sentença que lhe cabia por inteiro.
Tendo-se, então, remetido ao silêncio, melhor seria, para ele, para o país e para toda a classe política, que deixasse que o assunto caísse no esquecimento. Sucede, contudo, que Cavaco Silva não perdoa as afrontas, e gosta de ajustar contas. Provavelmente, Cavaco não perdoa a Sócrates a sua associação ao caso BPN, desconforto que já por mais de uma vez tornou nítido, e que tomou conta dos seus discursos, na noite em que ganhou as eleições e, mais tarde, na sua tomada de posse.
Desta forma, prestou um duplo e péssimo serviço a Portugal. Não atuou quando devia, e falou fora de tempo. Perdeu, assim, espaço e autoridade para fazer a ponte entre o Governo e a Oposição.
A Presidência da República vive hoje, por culpa do seu incumbente, e de uma preocupante ausência de sentido de Estado, uma crise sem paralelo, pelo menos desde o 25 de abril. Com raríssimas exceções, como a dos "cavaquistas anónimos", que seguem uma agenda pessoal, ninguém consegue defender, na praça pública, a sua atuação.
Mesmo entre os seus fiéis apaniguados, há quem segrede, em privado, que os próximos quatro anos que lhe restam vão ser dramáticos e perigosos. Marcelo, que ainda há poucas semanas defendia que se deve respeitar o presidente da República em vez de o criticar, não lhe perdoou este novo episódio. A verdade é que Cavaco se transformou num elemento de instabilidade, complicando a vida ao Governo e fazendo a vida negra ao maior partido da Oposição. A verdade é que tem desperdiçado o apoio popular com que contava e, pior do que isso, deixou que a autoridade do cargo que ocupa seja hoje questionada pelo povo. E é verdade também que os quatro anos de mandato que ainda lhe restam serão, por este andar, um infindável calvário. Para ele, e para todos nós portugueses.