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Repete-se a tese benigna e apaziguadora de que o milhão e cem mil de eleitores que votaram no partido da extrema-direita não podem ser todos racistas, xenófobos, machistas e homofóbicos. Não é o que dizem estudos internacionais como o European Social Survey em que os portugueses aparecem no topo do ranking dos povos com maiores preconceitos racistas enraizados. Não é o que se percebe pelas grandes polémicas sempre que se fala de direitos de pessoas trans, em que até a simples implantação de casas de banho escolares sem género vira campo de batalhas ideológicas sangrentas. Não é o que demonstram os alarmantes números de violência doméstica, ano após ano.
Lamento, mas discordo dos otimistas: vivemos num país em que uma expressiva parte da população concorda com os valores do Chega e é, de facto, racista, homofóbica, misógina. É só ouvir conversas de café, bitaites de taxista saudoso do salazarismo, ler comentários nas redes sociais (sobretudo nos perfis informativos), estar a par da campanha de desinformação que a extrema-direita propaga na internet (em todo o Mundo), com fake news, teorias da conspiração, doutrinação de adolescentes seguidistas (que acreditam em tudo o que leem no Tik ToK ou ouvem da boca do seu youtuber-guru favorito). Enfim, é preciso estar muito alienado ou encerrado num condomínio fechado, para não perceber que aquele milhão e cem mil são as pessoas normais do dia a dia. Concidadãos, parceiros de viagem de autocarro, vizinhos de cima, pais com os filhos na mesma escola, trabalhadores da caixa do supermercado, colegas de escritório, familiares mais ou menos distantes, figurantes (ou até protagonistas) das nossas vidas.
É por isso que fica difícil, depois dos resultados de 10 de março, não andar na rua com ar desconfiado, mirando o próximo de esguelha, com ar zangado. Há um certo receio de que o simpático senhor da confeitaria seja um desses eleitores. Está instalado um clima de desconfiança pelo próximo que, sendo legítimo, é para mim uma espécie de segunda vitória da extrema-direita. Temer o outro, cavar trincheiras, entrar na polarização e na lógica eles contra nós, dividir o Mundo pelo critério ideológico é fazer vigorar o modus operandi e o discurso dos populistas.
Outra dimensão do mesmo otimismo benigno é o discurso paternalista e bem-intencionado de que temos de “acolher” estas pessoas, porque foi o desamparo do Estado social que as levou ao “voto de protesto”. Compreendo, em parte é verdade. Mas é mais uma vez a superioridade moral a falar do outro como um “corpo estranho”. A esquerda falhou, é certo, como falha tantas vezes a quimioterapia, trazendo efeitos secundários inesperados (inclusivamente), mas o problema é o tumor. E chega a ser um pouco demais culpar supostas políticas de esquerda (ainda que falhas e insuficientes) pelos problemas intrínsecos do capitalismo e (agora também) pelas escolhas ideológicas alheias.