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Alei que criminaliza os maus-tratos a animais de companhia exceptua os animais em explorações agropecuárias, touradas ou circos. Esta opção legislativa levanta-me tantas questões por responder, quanto aquelas com que o Minotauro assaltava a mitologia grega. Também aqui, como nessa criatura representada por uma cabeça de touro em corpo de homem, há um labirinto de motivações e desculpas esfarrapadas bem no centro da discussão. Se o labirinto de Creta construído por Dédalo alojava um Minotauro devorador no seu centro (diz a lenda, derrotado por Teseu e pelo seu fio de Ariadne), já o labirinto da lei portuguesa preferiu esquecer-se de uma parte de leão deste debate. Nunca chegando ao centro, a nova lei não encontrou o seu Minotauro no labirinto, mas também nunca correu riscos de ser devorada e chumbar. Escolheu o caminho mais fácil, onde a saída está indicada com a placa "talvez um dia". Ficamos sem perceber qual o fio da meada que vai permitir encetar o caminho de volta e introduzir aquilo que o CDS-PP quis deixar propositadamente de fora: os animais que, por força de serem parte de um negócio, podem continuar a ser vítimas de violência e de maus-tratos.
Desenrolar o fio de Ariadne para entender o percurso sinuoso da aprovação desta lei é uma arquitectura do disfarce. Daí que a Liga Portuguesa para os Direitos dos Animais considere esta lei como "rudimentar". Já vimos um pouco de tudo, mas a ser verdade que os touros são animais de companhia, há certamente alguém que os tem bem escondidos dentro de casa numa arrumação de espaços amplos. Não o são, de facto. Mas o CDS-PP quis deixar claro que numa lei que criminaliza os maus-tratos a animais, se deve deixar de lado aqueles que servem um negócio, uma exploração, uma economia, uma tradição grotesca mas marialva de história. Alguém há-de propor, daqui a uns anos, mais uma lei avulsa para o labirinto legislativo em que se transformou o nosso país, regulando os direitos de todos os animais com mais uma lei à parte e cheia de especificidades, planos de fuga e ratoeiras. Sim, porque, como escrevia Orwell, para o CDS-PP "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros". Sem esquecer um laçarote de votos contra e abstenções de parte da sua bancada, certamente porque alguns dos seus deputados terão pensado que animais não são eles, mas os outros.
De um extremo do espectro político ao outro, a posição do PCP ainda me parece mais incompreensível. Refugiando-se na abstenção por preferir medidas preventivas, não considerando que maus-tratos, abandono ou morte devam ser criminalizáveis, o PCP conta para si mesmo um conto de fadas tal e qual como se elas existissem no seu pequeno politburo à escala nacional: é desconcertante pensar que o PCP encontra refúgio no ecossocialismo do PEV (Partido Ecologista "Os Verdes") para agitar a bandeira unitária da CDU desde 1987. E "assim se vê a força do PC" mesmo no âmago de um assunto central para o seu companheiro de coligação. Foi por não existirem medidas concretas contra a violência que chegamos a este ponto. Daí que continuemos todos amarrados ou coligados uns aos outros. Como preferirem.
Perdoem-me a confissão, mas acho absolutamente insuportáveis aquelas pessoas que passam a vida a fazer de conta que os animais são melhores do que as pessoas (como se fosse comparável), que usam as redes sociais para exclusivo interesse dos seus caninos ou felinos focinhudos (que bonitos, não são?) ou para pedir caridosamente a adopção de cinco ninhadas de cachorros por dia (é só mais um...). Mas respeito imensamente os direitos de tudo o que nos permite viver, sou contra as touradas desde criança (que o digam os meus vizinhos, que viam um rapazito de oito anos a fazer, fotocopiar e a distribuir panfletos contra as touradas, inundando as suas caixas de correio com cópias "hand-made") e sempre gostei de labirintos com minotauros como recompensa final. A descriminação na lei está aprovada, mas agora há que tratar dela com carinho: fiscalização, obviamente. A lei precisa de ser efectiva e aplicada, para que não seja letra morta. Se bem que, para alguns, isto dos maus-tratos, do abandono ou da morte se resolva facilmente com votos contra ou abstenção. Quantos mais anos passarão até desmentirmos Orwell, quando sabemos que a sua metáfora se dirige às pessoas?