Não aconteceu quase nada nesse dia, mas vou relembrar. Também a solidão é uma ausência cheia de coisas que não acontecem, e fala-se muito dela. A mulher levantou-se e saiu da sala de julgamentos. Saiu sem solavancos, avançava parada num chão móvel - uma garrafa que vai no tapete rolante da fábrica para encher e rolhar. Nada dependera de si, só da máquina, mas a máquina parara.
- O principal interessado não veio, mais uma vez. Pode ir à sua vida, dissera-lhe o juiz.
Acusada de um crime, a mulher foi absolvida por falta de comparência. Os acusadores, simplesmente, faltaram duas vezes seguidas ao julgamento... nem quiseram saber, preferiram deixá-la sozinha na sala, duas manhãs em semanas diferentes. Os advogados não apareceram com a acusação particular à mulher, nem disseram nada ao tribunal.
- A segunda falta é dada como desistência, salvo se houver resistência da arguida. Julgo que a este assunto só falta então... Senhora Ana, aceita esta desistência da acusação contra si?
- Sim...
- O Ministério Público nada tem a opor.
Os ausentes pagaram caro o extraordinário momento judicial: todas as custas do caso, mais os honorários do advogado oficioso da arguida, eram agora responsabilidade da «vítima» da mulher. Centenas de euros que gastaram para não condenar a mulher que acusavam!
Por isso, ela saiu calma do tribunal - mas, pareceu-me, algo ofendida. Abanou os ombros a acender o cigarro resmungando qualquer coisa à chama do isqueiro. Era uma mulher com os ossos todos contáveis debaixo do pergaminho da pele e dos tecidos. Os cabelos estavam abertos em leque grosso. Vista de costas, a cabeleira não dizia nada sobre a cara, mas isso é comum.
Eu nem percebera de que crime se tratava (grave, ligeiro, ridículo?). Mostrei o cartão de jornalista e perguntei, por favor, o que se passava ali.
- Não leio jornais, disse a mulher.
- Está no seu direito.
- Não gosto de jornais. Nunca leio nenhum. Nem os gratuitos.
- Não lhe peço que leia, mas que fale para um.
Para pessoas especiais, um pouco de espírito. Ela começou quase, quase um sorriso, não chegou. O sol estava oblíquo na janela.
- Diga.
- A senhora foi acusada de quê?
- De ameaças por telefone... Mas eles nem tinham registo, porque eu nunca lhes telefonei. Mas hoje não quero dizer mais nada.
-Posso telefonar-lhe amanhã, por favor? Dá-me o seu telefone?
- Sim.
Telefonei no dia seguinte e: «Tu... tu... tu... tu... tu... O número que marcou não está disponível...» «Tu... tu... tu... tu... tu... the number you have dialed is not available".
Nada. Levei com uma falta de comparência. Nem jornais, nem telecomunicações. Mais tarde soube da acusação. Era feia. A mulher alegadamente telefonara a um homem e gritara:
- Eu mato-te, meu cabrão! É uma ameaça de morte! Pedi-te para não meteres a minha família nisto!
E continuava, dizendo:
- Mato-te a ti e à tua família! Nunca mais podes andar descansado!
Ao ler isto, senti: ainda bem que o julgamento acabou sem começar. Como se um espírito de misericórdia, e de paz, e o mais belo de todos, o espírito do bom senso, tivessem salvado um pouco esse Natal, esvaziando pelo menos uma violência do mundo.
O autor escreve segundo a antiga ortografia

