O movimento dos "coletes amarelos" estende à França os receios políticos que cobrem de nuvens negras a Europa e o Mundo. É difícil dar uma identidade política a um movimento que junta os extremos da Esquerda e da Direita e apresenta reivindicações incompatíveis entre si.
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Por detrás da crescente contestação social e do ressurgimento do populismo está um profundo mal-estar social que talvez apenas tenha paralelo na revolução industrial. Esta alterou de forma significativa a organização económica e do trabalho conduzindo a níveis de crescimento económico sem paralelo na história mas também a uma profunda incerteza e desigualdade. Um deputado britânico resumia assim essa realidade no início do século XX: "Aqui, num país indescritivelmente rico temos pessoas indescritivelmente pobres". Muitos historiadores relacionam o populismo desses tempos, e as guerras a que conduziu, com essa realidade social. Muitos encontram também aí a origem do Estado social. Foi a resposta encontrada para que os ganhos da revolução industrial beneficiassem todos.
Temos hoje um desafio igual. A globalização e a revolução digital estão a mudar de forma profunda a organização económica e social. A mobilidade de bens, serviços e capitais e a automação da economia promovem o acesso a muitos mais bens e serviços mas fazem-no com um impacto redistributivo com que o nosso Estado social parece incapaz de lidar. Tivemos, nas últimas décadas, um enorme crescimento económico no Mundo. Temos menos pobreza e uma classe média mais alargada. Temos até mesmo mais igualdade entre regiões do Mundo. Mas temos mais desigualdade dentro dos estados. A desigualdade tem-se agravado mais nos EUA do que nos estados europeus mas ela é comum num ponto: a enorme e desproporcional riqueza de uma ínfima percentagem da população (o que nos EUA designam de Top 1%). E é uma desigualdade que está também a afetar a mobilidade social. Tudo isto tenderá a agravar-se com o impacto redistributivo da robótica e inteligência artificial na eliminação de certo tipo de empregos (alguns estudos estimam 35% no Mundo e 50% em Portugal, um dos países potencialmente mais afetados). Mesmo que novos empregos sejam criados, não serão empregos que os anteriores trabalhadores possam facilmente exercer.
A insegurança existencial que as transformações em curso trazem só será eficazmente combatida se conseguirmos repor a esperança decorrente da mobilidade social e a proteção social e combate à desigualdade que suportaram o contrato social pós-revolução industrial. Isso não se fará regressando à utopia de esquerda que presume que a justiça social se atinge retirando aos mais ricos o que for necessário sem se preocupar com os efeitos que isso terá na criação de riqueza. Mas também não se fará presumindo que promovendo o crescimento e o enriquecimento todos beneficiarão, sendo irrelevante a justiça relativa na distribuição dessa riqueza.
Foi do liberalismo que partiu o conceito de Estado social, para permitir que as vantagens da sociedade industrial de mercado chegassem a todos. Uma parte importante da Esquerda viu até com suspeita esse conceito: era uma forma de fazer sobreviver o sistema capitalista, ao acomodar as suas tensões sociais. Os moderados têm hoje de retomar esse papel: ou reconstruímos o contrato social, permitindo que os ganhos da revolução digital e globalização cheguem a todos ou deixaremos que os extremos coloquem em causa esse ganhos... para todos.
Professor universitário