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No fundo do mar vive-se uma distância aquática que é quase morte. Todos os dias, algures no oceano, se sente esta solidão, mas hoje algures é muito perto do Titanic.
À vista do casco quebrado e torcido pelo naufrágio, e depois lentamente comido pelos organismos que se alimentam de ferro, à vista desse grande refém de metal, onde certos peixes não chegam e outros se desfeiam para suportar as profundezas - afundou-se este domingo o submersível Titan.
O pequeno Titan vai arrefecendo, vai-se assemelhando ao paquete que queria visitar. As notícias dizem que talvez ainda haja tempo para que as cinco pessoas encurraladas não se juntem às mais de mil e quinhentas vítimas do Titanic, mas àquela profundidade o resgate é quase impossível.
Em Abril de 1912, a Capital dizia sobre o naufrágio que “o mar está povoado de perigos a que nenhum poder humano pode ainda eximir-se”. Mais de cem anos depois, o mar é o mesmo e nós os mesmos também, neste sentido: talvez por serem mais comportáveis do que a simples fatalidade, que não é culpa de ninguém, continuamos à procura de castigos para os nossos pecados.
O naufrágio do Titanic foi visto como punição por se ter proclamado, contra as leis da natureza, que o navio era inafundável. O navio já não era um navio: era um símbolo dos limites do progresso, um desfecho desiludido para o século XIX vitoriano. Afundara-se por intervenção de uma espécie de Poseidon laico - que habita sabe-se lá sob que ondas -, para nos ensinar que ninguém pode mais do que a natureza.
O naufrágio do submersível Titan parece evocar castigos semelhantes. Já não por causa da húbris, mas de uma outra ofensa mais mesquinha: o turismo. Chegou a paga para os males do turismo milionário, que leva turistas ao fundo do mar e às fímbrias do espaço e que é a síntese do desperdício luxuoso e nada solidário.
Isto está muito bem para as filosofias infantis em que o Mundo, embora castigador, não é cego e busca a justiça. E isto está bem para quem não aceita que a sorte e o azar - o caos humano e principalmente o caos natural - vivem muito bem sem desígnios e balanças. Para quem não aceita que os navios humildes, tal como os navios arrogantes, também naufragam.
Mas a três mil metros de profundidade as metáforas não sobrevivem. No fundo do mar estão cinco pessoas numa solidão digna de Jonas. Talvez já tenham morrido. Se ainda estiverem vivas, talvez conheçam de cor a prece de Jonas na barriga da baleia, e a repitam antes de morrerem: “Fui expulso da tua misericórdia, / Mas um dia, sei-o, / Verei o teu santo templo de novo. // As águas sufocaram-me até à alma: / O abismo cercou-me, / O oceano cobriu-me a cabeça. // Desci até à raiz das montanhas, / As trancas da terra fecharam-me para sempre, / Mas tu resgatarás a minha vida da corrupção.” (Jon2)
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Escritor