Não creio que o atraso de uma semana na confirmação, pelo presidente da República, de uma solução anunciada tenha sido tempo perdido.
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Tal como Cavaco Silva referiu, as negociações, mesmo que falhadas, terão permitido reforçar a consciência de que há vários domínios em que os partidos subscritores do memorando estão mais próximos do que parece. Se o CDS, cada vez mais o partido charneira, conseguir desempenhar o papel que a remodelação permite antever, talvez seja viável um entendimento, sem a ambição da salvação nacional, que dê credibilidade a um reforço da estabilidade política em áreas essenciais. Para isso será preciso que o primeiro-ministro abandone a intransigência e arrogância que o tem caracterizado. Se, antes, dinamitou todas as pontes com os socialistas, agora parece continuar empenhado em evitar que se reconstruam. Por estas e por outras, ameaça tornar-se no maior empecilho a uma mudança no clima político.
Para que aquela aconteça será necessário que o PS mude, também, de discurso. Quem leu o seu documento orientador das negociações encontrou uma lista que mais parecia a dos pedidos ao Pai Natal. Não há nada que se aproveite? Há, como é óbvio. Sobretudo a importância, ontem sublinhada pelo presidente, da frente europeia enquanto instância que pode facilitar, ou impedir, um processo de ajustamento e recuperação menos penoso. Algo a que Passos Coelho nunca deu a devida importância, limitando-se a fogachos de colagem oportunista a concessões obtidas por países terceiros. Era por aqui que as negociações deveriam ter começado mas não nos termos em que os socialistas colocavam a questão, dando-a por resolvida, confundindo desejos com realidade e não aprendendo nada, por exemplo, com a frustração francesa.
Por mais concessões que possam vir a ser obtidas junto dos nossos credores, a solução não pode descurar a frente interna. Sejamos justos: algumas das melhorias obtidas face às condições iniciais resultaram da constatação pela troika de que, mesmo cumprindo tudo o que havia sido previsto, não alcançáramos os objectivos fixados. Mais isso do que qualquer disponibilidade, por parte das entidades europeias, para mudar de política.
Não cuidarei, hoje, das grandes linhas dessa mudança, interna e externa. Focar-me-ei em coisas talvez mais comezinhas mas que poderão contribuir para que a discussão política se faça numa base mais clarificadora. Poderia começar por retomar o tema do "roubo" e dos "ladrões" que o PC e o Bloco continuam a agitar de uma forma que, no meu entender, ultrapassa o que a luta política legitima. A complacência com este tipo de linguagem traduz uma degradação de valores em que já nem a honorabilidade conta. Que seja a autoproclamada esquerda a usar e abusar deste discurso diz bem da ética que os rege. Primeiro ponto para um compromisso alargado: na política não pode valer tudo, mormente quando está em causa o bom nome de terceiros.
A tolerância, e até a receptividade, a este tipo de rótulos decorre, em larga medida, da opacidade que rodeia alguns temas polémicos, máxime o caso BPN que tende a eternizar-se. É inaceitável o contrato de venda ao BIC não ser público, o que alimenta todo o tipo de especulações. Segundo ponto: a informação sobre os actos do Governo deve, por norma, ser pública.
As diferentes alternativas políticas traduzem valores, prioridades e perspectivas sobre a organização da sociedade que não se reconduzem a uma dimensão quantitativa. No entanto, em situações de penúria de recursos, as despesas ganham relevo. O que não quer dizer que todas tenham, para todos, a mesma importância. As diferentes opções seriam mais claras, se um reforço da unidade técnica que apoia o Parlamento lhe permitisse fazer uma pedagogia das regras orçamentais de determinação das receitas e despesas. E esse seria um terceiro ponto do tal compromisso alargado.
Por ingénuo que pareça, estou convencido que uma convergência em torno de pré-requisitos de género dos referidos beneficiaria a qualidade da democracia e talvez conduzisse a que a política e os políticos fossem menos vilipendiados.
O autor escreve segundo a antiga ortografia