Numa semana, Marcelo Rebelo de Sousa estragou, por duas vezes, momentos aclamativos de António Costa. Em dia de anúncio deste Governo, suspendeu a audiência para se inteirar dos novos nomes; na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional, prendeu o primeiro-ministro a toda a legislatura. E chamou a si uma inesperada visibilidade mediática.
Corpo do artigo
Da tomada de posse de 2019, o JN construía assim o título da respetiva notícia: "Costa promete ser imune a ciclos eleitorais". A fotografia que enquadrava a peça mostrava todo o elenco governamental. Ontem, o título do artigo noticioso referente ao mesmo acontecimento era o seguinte: "Marcelo diz que "preço da grande vitória" de Costa é ficar até 2026". Na foto, viam-se apenas Marcelo e Costa. A mudança do sujeito das frases e a alteração do ângulo das imagens não resultam de uma acidental opção jornalística, espelham antes uma mudança de paradigma. Na política e no relacionamento entre Belém e S. Bento.
António Costa percebe bem as intenções deste desalinhamento inicial. Procura desvalorizá-las, mas sabe que isso não é por acaso. Num livro que escrevi com Leonete Botelho sobre o primeiro mandato do atual PR, a jornalista Natália Carvalho assegurava que "em Belém não há improvisos", acrescentando que, apesar de existir uma agenda muito preenchida, tudo é bem pensado, ao ponto de eventualmente julgarmos que haverá um planeamento do ano a partir do dia 31 de dezembro para trás". Lembrei-me dessa nossa conversa ao ouvir o PR interpelar o PM para que fique até ao fim da legislatura. Ninguém estaria à espera de uma frase tão disruptiva naquele contexto. Pelo que significa para o futuro e para o que representa no presente.
Face a este novo estilo de Marcelo que, a nível discursivo, se aproxima do registo sarcástico de Augusto Santos Silva, Costa tem duas opções: ou afronta o PR, procurando, a partir da maioria absoluta que tem, esvaziar parte dos poderes presidenciais, sobretudo o poder da representação mediática que tanta influência confere ao chefe da nação; ou continua a apostar numa cooperação institucional cúmplice. Num primeiro momento, o PM vai continuar a criar pontes com Belém, porque sabe que um clima crispado não beneficiará ninguém, mesmo tendo um amplo conforto no Parlamento. O problema estará na imprevisibilidade de Marcelo, que poderá baralhar tudo, criando um outro eixo de relacionamento entre Belém e S. Bento.
*Prof. associada com agregação da UMinho