Jaime Neves morreu na semana passada. Conheci-o através do meu Pai, de quem foi amigo. Recentemente, quando apresentei, no Porto, e na companhia do general Almeida Bruno, a sua biografia, escrita pelo seu camarada Rui de Azevedo Teixeira, soube que o velho guerreiro estava muito doente. Espero que Jaime Neves tenha podido ainda ler esse magnífico livro, que tão bem retrata a sua vida, de homem de guerra e de boémio, de um zé-povo, como o autor lhe chama com carinho e admiração. Uma personagem complexa, que poderia ter inspirado Hugo Pratt, um herói que conseguimos imaginar, sem dificuldade, numa das baladas de Corto Maltese, uma figura histórica e real, que existiu e que teve uma participação ativa e decisiva num conjunto de acontecimentos históricos e excecionais, que marcaram a segunda metade do século XX, e que conduziram à democracia.
Corpo do artigo
Entre os muitos militares que participaram no 25 de Abril, Jaime Neves é um caso único. Guerreara, em África, pelo Império. Apercebeu-se das fragilidades do colonialismo, mas lutava pela pátria. Depois, regressado a Portugal, começa a virar-se contra o regime, insurgindo-se contra as suas políticas. Participa ativamente no 16 de Março e, ao lado de Salgueiro Maia, no 25 de Abril. A sua chaimite serve de pedestal, poucos dias depois, para o discurso de Álvaro Cunhal, cuja segurança lhe fora confiada à chegada à Portela. Quando a prometida democracia se transforma num "Processo Revolucionário em Curso", em que alguns dos seus camaradas entregam o poder ao Partido Comunista, Jaime Neves empenha-se na manutenção da ordem, na medida do que lhe é possível. Mas, quando a extrema-esquerda tenta o golpe final, no 25 de Novembro, quando o país está, subitamente, à beira da guerra civil, Neves transforma-se no herói do dia. Ao restituir aos portugueses "a cidadania plena, a liberdade de instituírem uma democracia constitucional pluralista, um Estado democrático de direito", como Ramalho Eanes recordou, Neves cumpre, ao contrário de tantos dos militares de Abril, a promessa que fora feita no dia da revolução, e que depois tinham traído.
Temos, pois, uma enorme dívida de gratidão a este guerreiro que agora partiu. Porque, enquanto militar, num teatro de guerra, cumpriu como bom soldado. Porque participou activamente nos golpes de estado de 16 de Março de de 25 de Abril, que viriam a derrubar o antigo regime. Porque, durante o período revolucionário, esteve ao lado dos cidadãos. Finalmente, porque realizou a revolução democrática, em 25 de Novembro, cumprindo com as promessas que haviam sido feitas, e que iam sendo atraiçoadas.
Depois, teve o mérito de saber sair de cena. Era chegado o tempo de construir a democracia e Neves sabia bem que essa tarefa não carecia da tutela dos militares. Ao contrário de Vasco Lourenço, nunca tentou assumir a paternidade do regime que ajudou a criar.
Sem qualquer surpresa, o Bloco de Esquerda, o PCP, e Os Verdes (esse partido dito democrático que tem uma enorme legitimidade eleitoral...) votaram, na Assembleia da República, contra o voto de pesar a Jaime Neves. De facto, eles representam, ainda, as diversas forças que foram derrotadas no 25 de Novembro. Para eles, obviamente, Jaime Neves representava o inimigo. Depois, nos blogues afetos às forças ditas "democráticas", surgiu a insídia. Houve mesmo quem tentasse ligar o guerreiro ao massacre de Wyriamu. Uma acusação torpe, porque no célebre relatório do padre Hastings não se fala de nenhum Jaime Neves que, à data dos massacres de 1972, era comandante do batalhão de comandos de Montepuez, a mais de 1000 quilómetros de Wyriamu.
Sim, entende-se o ódio latente, daqueles que Jaime Neves derrotou e que ainda não se conformam com o facto de a democracia, que tentaram raptar, ter sido libertada por um valente. Na guerra, foi adulado pelos seus homens e respeitado pelos seus inimigos. Em paz, os admiradores de Otelo, Vasco Gonçalves, Corvacho e Rosa Coutinho nunca lhe poderão perdoar. Para mim, e para muitos portugueses que não esquecem, Jaime Neves é um herói. Para sempre.