Um presidente sobrecarregado de atributos simbólicos mas destituído de competências para governar pode tornar-se um espelho onde o cidadão comum veja refletidas as suas próprias mágoas, partilhe as mesmas esperanças ou até possa entrever uma sublimada impotência. A proporcionalidade do sistema eleitoral contribuiu para aprofundar o fosso que separa os eleitos dos eleitores, projetando desconfianças sobre o funcionamento do sistema de representação democrática que a clausura dos aparelhos partidários e o cansaço da retórica e dos jogos parlamentares se encarregariam de acentuar. É certo que um presidente sóbrio e prudente, distante dos conflitos que dividem o Governo e a Oposição, é uma fonte de confiança na democracia e, sem dúvida, é de confiança que hoje carece a política e a reanimação da vida cívica. Contudo, a vasta latitude e a relativa indeterminação das funções presidenciais definem uma condição estrutural que acautela o seu titular das contingências do Mundo e da incerteza do futuro, colocando-o, ao longo de sucessivos mandatos, nos píncaros da popularidade. O papel original atribuído pela Constituição ao presidente reflete um velho preconceito antidemocrático alimentado pela ditadura de quase meio século, fortemente personalizada por dois chefes de governo: Salazar e Marcelo Caetano. Foi o receio de uma excessiva partidarização da política parlamentar que conduziu a Assembleia Constituinte para o desenho de um figurino presidencial em que a força legitimadora da eleição por sufrágio direto e universal do presidente da República parece contrastar com a sobriedade das funções que desempenha quotidianamente, enquanto agente moderador da conflitualidade política, fator de estabilidade e intérprete prudente do sentimento popular. E foi esta tradição de prudência e sobriedade, cultivada em diferentes registos ao longo dos últimos cinco mandatos presidenciais, que pode agora ficar comprometida pela acusação presidencial dirigida ao anterior primeiro-ministro, de "uma falta de lealdade institucional" que ficará registada na história da nossa democracia.
Corpo do artigo
O presidente explica no prefácio ao balanço que faz do último ano, na 6.ª edição dos seus "Roteiros", que foi nas pausas da sua campanha eleitoral que começou a esboçar o célebre discurso da tomada de posse que assinalou o início do seu segundo mandato: "Teria de ser uma intervenção de fundo que levasse o Governo a reorientar o sentido da sua ação, adotando as políticas adequadas para ultrapassar a crise". Sem dúvida, o presidente reclama aqui a adoção de novas políticas e exige um sentido diverso para a ação governativa, o que configura uma intervenção flagrante na esfera própria do poder executivo. Mas daí não podemos concluir que Cavaco Silva se afasta da orientação dos seus antecessores para reivindicar uma nova partilha das competências da governação Com efeito, invoca Jorge Sampaio para concordar que "o presidente não governa e não é responsável ou sequer corresponsável pela política prosseguida pelo Governo", para, mais adiante, insistir que "nos termos da Constituição, o Governo é o órgão responsável pela condução da política geral do país", concluindo que, de "facto, o presidente não pode, nem deve, substituir-se ao Governo nem à Oposição, a quem cabe encontrar as alternativas políticas à solução governativa existente."
Apesar das discrepâncias antes referidas entre a teoria e a prática, a verdade é que estas declarações doutrinais não se afastam dos cânones estabelecidos pelos seus antecessores. E na avaliação a que procede da ação presidencial desenvolvida entre 2009 e 2011, Cavaco Silva retoma, na interpretação dos poderes presidenciais para a nomeação, demissão do Governo e dissolução da Assembleia da República, as mesmas razões e procedimentos instituídos pelo nosso singular semipresidencialismo, repudiando expressamente a prática eanista, anterior à revisão constitucional de 1982, dos chamados "governos de iniciativa presidencial". Matéria, enfim, a reclamar mais demorada atenção.