Corpo do artigo
1Há pouco mais de dois meses, Sócrates acamou a regionalização na sua imensa gaveta das reformas adiadas para data nebulosamente incerta. Disse, então, que incumpria mais essa promessa, inúmeras vezes apregoada por todo o partido socialista (até repousou nos dois últimos programas eleitorais e de Governo), devido "às circunstâncias económicas e políticas", concluindo que era inevitável "reconhecer que não estão reunidas as condições para a realização do referendo sobre a regionalização".
Mas o pior primeiro-ministro da história de Portugal não se ficou pelo mero pontapear de outra jura eleitoral - exercício em que se tornou exímio. Quis engendrar mais um arremedo de reforma e defendeu a eleição directa dos líderes das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto acompanhada pela transferência de um importante acervo de poderes para estas duas circunscrições. Esta última intenção traduz-se numa autêntica perfídia centralista: Lisboa e Porto, agregados aos seus concelhos limítrofes, são as zonas mais apetrechadas do país em recursos, infra-estruturas e massa crítica. Ou seja, ir-se-ia beneficiar com a descentralização territorial as duas áreas mais privilegiadas do país - para que estas pudessem contrastar, ainda mais, com o resto de Portugal, agravando as desigualdades territoriais e a dramática falta de homogeneidade do todo nacional. A descentralização regional, em toda a parte, é tida como o instrumento mais capaz para um país prosperar de forma paritária em todas as parcelas do seu território - Sócrates quis fazer o contrário: incrementar os territórios mais favorecidos ao mesmo tempo que votava o interior e o litoral mais distante dos dois grandes pólos de desenvolvimento no penoso estado de letargia em que decaíram.
Pior: a criação de duas autênticas regiões administrativas à volta de Lisboa e Porto faria derruir o mapa das cinco regiões, o único que oferece exequibilidade. Assim, Sócrates, de uma penada, aumentava as patentes irregularidades de desenvolvimento territorial do país e liquidava a viabilidade da regionalização para o futuro. Na verdade, uma genuína lição de mau governo, matéria em que este Governo transborda ciência e catedráticos...
2. Na semana passada conheceu-se o programa do PS. Li-o de imediato. A coisa compõe-se de 70 páginas em 5 capítulos, sendo que 35 de estas, mais de metade, portanto, são gastas num esforço pungente de apologia impossível dos últimos seis anos de governação.
O programa é um falhanço rotundo sob qualquer perspectiva: pobre na escrita e árido na imaginação política; reduplica promessas não cumpridas de 2009 como se o país estivesse na mesma situação de há dois anos e não existisse qualquer pedido de ajuda externa; as propostas são falaciosas porque ignoram alguns dos dados mais relevantes do fracasso da governação; é deslealmente vago quando refere os sacrifícios que irão ser exigidos aos portugueses ("revisão" das deduções fiscais, "racionalização" do IVA, "reorganizar" o SNS); é dolosamente impreciso quanto à elefantíase das grandes obras públicas (TGV, novo aeroporto ou Scut); por fim, é mentiroso em pontos essenciais - por exemplo, atreve-se a estabelecer objectivos a partir do défice de 2010 de 6,8% em vez do valor oficial, para já, firmado em 9,1%...
Quem faz um programa tão mau não merece governar.
3. Sobre a regionalização, o programa do PS volta a defender aquilo que rejeitou há cerca de dois meses: sem que a consciência os faça sequer pestanejar, os seguidores de Sócrates juram, outra vez, que vão referendar as regiões administrativas - ao mesmo tempo que reincidem em sustentar a eleição directa dos seus titulares políticos. E não se enxerga qualquer explicação para o facto de a segunda proposta inutilizar a primeira...
Este PS é capaz de prometer tudo e o seu contrário. Sustenta hoje o que garantiu ser impossível há 70 dias. Faz juras incessantes e contraditórias em que ninguém pode confiar. Esta atitude ziguezagueante acerca da descentralização regional é o melhor argumento para a triste conservação de Portugal como o local mais centralizado do mundo civilizado. E uma amarga explicação para grande parte da decadência em que estamos.