Um programa precipitado, errado e nocivo
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No dia do encerramento formal do programa de resgate a Portugal, não há como não falar do assunto. Falarei, pois. Mas devo avisar que só tenho palavras nuas e duras. Quem for muito sensível não deve prosseguir a leitura. O recurso à troika, nas circunstâncias em que ocorreu, teve um responsável: a maioria PSD-CDS-PCP-BE que se formou para chumbar a solução alternativa, negociada com as instituições europeias. Nisso, Angela Merkel não teve nenhuma culpa; pelo contrário, até tentou ajudar. Foi aquela maioria, incentivada pelo presidente da República, que precipitou o resgate, impedindo que Portugal tentasse superar as grandes dificuldades por que passava noutro quadro, mais favorável, de apoio europeu - o quadro que haveria de sustentar a posição de países como a Espanha e a Itália, e que o nosso Parlamento liminarmente recusou. Não sei se teríamos conseguido, mas sei que a sofreguidão pelo poder e o radicalismo não nos deixaram sequer tentar.
Oprograma de ajuda, que teve de ser negociado por um Governo em gestão corrente, a um mês de eleições antecipadas, foi mal desenhado. Baseou-se em premissas erradas, como o FMI já várias vezes reconheceu. Os efeitos recessivos foram mal calculados, usando um multiplicador claramente subestimado. A "teoria" que o fundamentou, a chamada austeridade expansionista - como se dizia por cá, cortando as "gorduras" do Estado libertar-se-ia a energia da sociedade civil... - cedo se revelou falsa. E o móbil principal do resgate, toda a gente o sabe, foi livrar os bancos alemães e franceses da sobre-exposição à dívida dos países sob ataque dos mercados, transferindo-a para instituições públicas.
Ainda assim, o desenho inicial do programa era moderado, em comparação com as revisões a que foi sujeito. Estas é que impuseram os cortes mais profundos de salários e pensões e os aumentos mais gravosos de impostos. Se o programa foi mal concebido, a execução foi bem pior.
Ele falhou os seus próprios objetivos. Hoje, temos mais dívida, mais défice, menos produto e mais desemprego do que o programa havia previsto; mesmo a Banca, a sua menina dos olhos, continua à beira do abismo. Mais grave ainda, hoje estamos, na generalidade dos indicadores, pior do que estávamos em 2011: regredimos na economia, no emprego, na proteção social e na extensão e qualidade dos serviços públicos; e o critério-chave da consolidação orçamental, a dívida pública, só se deteriorou.
É verdade que o défice foi reduzido. Mas os 5% que atingimos custaram-nos 30 mil milhões de euros retirados à economia e aos rendimentos do trabalho. É verdade que o défice externo melhorou. Mas foi à custa sobretudo da quebra brutal da procura interna. É verdade que regressámos aos mercados com taxas de juros nominais por enquanto comportáveis. Porém, a sua descida não tem a ver com o nosso programa de ajuda, mas sim com a intervenção do Banco Central Europeu; e não nos beneficia só a nós, mas a toda a Zona Euro.
Quer dizer que não houve qualquer elemento positivo, nestes três anos? Longe disso. A disciplina orçamental é boa, e deve ser mantida. O mesmo se diga da aposta nas exportações e na diversificação dos respetivos mercados, da redução das situações de privilégio na contratualização com o Estado e do incentivo à poupança. Mas os verdadeiros heróis do ajustamento, que permitiram que sobrevivêssemos à devastação que nos foi imposta, foram mesmo os portugueses - as famílias, os trabalhadores, muitos empregadores e a generalidade dos parceiros sociais. Foi a sua enorme resiliência e a sua moderação - que tão claramente contrasta com o fogo-fátuo dos radicalismos sem norte nem consistência - que trouxeram a Portugal esta ténue luz de esperança que hoje, apesar de tudo, vivemos.
Esse é maior absurdo do programa de resgate: que se tenha expressa e violentamente dirigido contra as forças do trabalho e da iniciativa, que são os melhores recursos do país.